“A Ciência e a Religião
não puderam, até hoje, entender-se,
porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo,
reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um
traço de união que as aproximasse. Esse
traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e
suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento
dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas
relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de
ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas
que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se
tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem [...].”1
HAROLDO DUTRA DIAS
Em edições anteriores, destacamos que a Primeira Fase do estudo da vida de Jesus pode muito bem ser compreendida como a etapa da abordagem puramente religiosa e teológica. [Ver Reformador dos meses de junho/ 07, p. 34, e julho/07, p. 34.]
O “endeusamento” da figura do Cristo estancou a busca pelas suas origens, sua cultura, seus ensinos. Nessa época, vigorou o chamado supranaturalismo,2 visto como credulidade ingênua nos milagres e nas curas de Jesus, e na unidade da natureza divina e da natureza humana na pessoa do Cristo (dogma da encarnação).
Na esteira do Empirismo Inglês3 (Francis Bacon, 1561-1626) e do Racionalismo Continental4 (René Descartes, 1596-1650) surge Baruch Spinoza (1632-1677), propondoa leitura e interpretação dos livros bíblicos, como todo e qualquer escrito, à luz do Racionalismo.
A oposição à fé e à religião, herança do Renascimento, culminaria no estabelecimento do Iluminismo (Aufklärung). Immanuel Kant, um expoente da filosofia desta época, definiu o Iluminismo como “a saída dos homens do estado de menoridade (não-emancipação) devido a eles mesmos. Menoridade é a incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro. Essa menoridade será devida a eles mesmos se não for causada por deficiência intelectual, mas por falta de decisão e coragem para utilizar o intelecto como guia. Sapere aude! Ousa saber! É o lema do iluminismo”.5
O século das luzes, trazendo em seu bojo o Empirismo, o Racionalismo, a crítica histórica e textual, o Enciclopedismo, não poupou os textos bíblicos. O complexo desenvolvimento de concepções e metodologias, abrangendo várias áreas de estudo, favoreceu a aplicação da crítica aos textos sagrados.
A leitura tradicional e piedosa dos Evangelhos, filha da credulidade ingênua, eivada de ogmatismo religioso milenar, sofre duro golpe. Influenciado pelo Iluminismo, H. S.Reimarus (1694-1768) inaugura a abordagem rigorosamente histórica dos quatro Evangelhos. Tem início, com a publicação dos seus fragmentos, a “busca do Jesus histórico”.
A Segunda Fase6 do estudo da vida de Jesus, iniciada por Reimarus, é marcada pelo espírito da época – Racionalismo. Nesse contexto, há uma resistência sistemática a todos os fatos ditos miraculosos, descritos nas páginas do Novo Testamento. O nascimento virginal, a ressurreição, as curas e os milagres despertam o interesse de inúmeros pesquisadores, que buscam, cada um à sua maneira, explicações “racionais” para esses eventos extraordinários da vida do Mestre.
Assim, concomitante ao lançamento dos “fragmentos de wolffenbüttel”,7 há uma profusão de publicações conhecidas como “Vidas de Jesus do Racionalismo”, caracterizadas como tentativas da Teologia alemã de explicar, do modo mais claro e racional possível, o elemento supranatural das narrativas evangélicas.
A premissa básica desses autores consiste em rejeitar, por falta de embasamento histórico, todos aqueles fatos que não possam ser compreendidos com o auxílio das leis naturais. A dimensão espiritual da vida é rotulada de “sobrenatural” e, conseqüentemente, desprezada. A Ciência, embora ensaiando os primeiros passos, jáse revestia da arrogância, tão duramente criticada na Religião.
Na
próxima edição, traçaremos um esboço das idéias principais dos racionalistas,
citando os autores mais representativos do período. Antes, porém, cumpre
avaliar a atitude desses estudiosos à luz da revelação espiritual.
Abordando
a questão do Racionalismo, o Espírito Emmanuel faz considerações valiosas a
respeito do assunto:
Questão 199 – Poderá a Razão dispensar a Fé? – A razão humana é ainda muito frágil e não poderá dispensar a cooperação da fé que a ilumina, para a solução dos grandes e sagrados problemas da vida.
Em virtude da separação de ambas, nas estradas da vida, é que observamos o homem terrestre no desfiladeiro terrível da miséria e da destruição. [...]
....................................................
Questão
202 – No problema da investigação, há limites para aplicação dos métodos
racionalistas?
– Esses limites existem, não só para a aplicação, como também para a observação; limites esses que são condicionados pelas forças espirituais que presidem à evolução planetária, atendendo à conveniência e ao estado de progresso moral das criaturas.
É por esse motivo que os limites das aplicações e das análises chamadas positivas sempre acompanham e seguirão sempre o curso da evolução espiritual das entidades encarnadas na Terra.8
Vê-se que a proposta da Espiritualidade superior reside na conjugação da Razão e da Fé, não somente nos assuntos relacionados ao conhecimento, mas, sobretudo, na construção de uma sociedade pacífica, justa e fraterna.Na feliz expressão do Codificador,9 é preciso encher o vazio que separa Religião e Ciência com o conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo.
Uma vez compreendidas essas relações, os milagres, as curas, e outros fenômenos eminentemente espirituais, descritos nos Evangelhos, serão vistos como decorrentes de leis imutáveis. Vencida essa resistência tola, imposta pela ciência materialista pós-iluminista, o aprendiz do Mestre estará em condições de extrair o espírito da letra, recolhendo as lições imorredouras que fluem dos fatos extraordinários da Vida de Jesus.
Fonte; Revista de Espiritismo Cristão Ano 125 / Novembro/2007 N o 2.144
Referencias:
1KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 127. ed. Rio de Janeiro: FEB,2007. Cap. I, item 8, p. 61.
2“O que acontece na
natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não
pode ser explicado com base neles. É um conceito próprio da Teologia Cristã,
que atribui à fé a crença no sobrenatural, assim entendido.” ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de filosofia.5. ed. revista e ampliada. Martins Fontes. p. 1080.
3Corrente filosófica para a
qual toda ideia é proveniente de uma percepção sensorial (cinco sentidos), logo
a experiência é critério ou norma da verdade. Nesse sentido, toda verdade pode
e deve ser posta à prova, e, em conseqüência, modificada, corrigida ou
abandonada. Entre seus representantes podemos citar Francis Bacon, Hobbes,
Locke, Berkeley, Hume
4Posição filosófica dos
séculos XVII e XVIII, na Europa, supostamente em oposição à escola que
predominava nas ilhas britânicas, o Empirismo, tendo como expoentes
Descartes,Malebranche, Spinoza, Leibniz,Wolff.
5ABBAGNANO,Nicola.Dicionário
de filosofia. 5. ed. revista e ampliada. Martins Fontes. p. 618.
6A maior parte dos
estudiosos do tema prefere chamar o período inaugurado por H. S. Reimarus de
Primeira Fase, já que desconsideram toda a produção do Supranaturalismo. Em
certo sentido, estão corretos já que não se pode falar em “busca do Jesus
histórico”, antes do trabalho daquele autor. Todavia, como pretendemos traçar
um esboço do estudo da figura de Jesus, em sentido amplo, preferimos incluir o
período anterior ao Iluminismo. Baruch Spinoza: leitura e interpretação dos livros
bíblicos à luz do Racionalismo Immanuel Kant
7Nome dado aos sete
fragmentos escritos por H. S. Reimarus, publicados por Gothold Ephraim Lessing,
em 1778, na Alemanha. Novembro
8XAVIER, Francisco Cândido.
O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003.
9Texto utilizado como
epígrafe deste artigo (Referência 1). 38 444 Reformador • Novembro 2007
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