segunda-feira, 27 de junho de 2016

As primeiras “salas” de reuniões mediúnicas?



Wesley Caldeira
caldeirawesley@ig.com.br

A arte é o espelho de uma época, ou a narrativa visual de um tempo, e sua finalidade – segundo bem intuiu o escritor Oscar Wilde – é criar um estudo da alma.

O homem pré-histórico era fascinado com a pintura na rocha.

Entre 60 e 30 mil anos atrás ocorreu a primeira grande transformação no comportamento humano, chamada explosão cultural ou explosão criativa do Paleolítico Superior. Subitamente – após 2,5 milhões de anos desde o aparecimento da linhagem Homo, e passados quase 100 mil anos, desde a chegada do último membro dessa linhagem, o Homo sapiens sapiens – surgem os primeiros objetos de tecnologia complexa e as primeiras manifestações artísticas e ideias religiosas.

Durante o século XX, os estudiosos polemizaram explicações para a arte na rocha.

Essas pinturas, de modo geral, retratavam a vida do caçador. Um grupo delas, porém, foi produzido sem qualquer intenção decorativa ou ocupacional, apresentando características enigmáticas que desautorizam a hipótese geral, pois:
  • esse grupo especial de pinturas foi gravado não em locais em que pudesse ser admirado, mas em paredes altas de cavernas completamente escuras, profundas, inóspitas, algumas quase inacessíveis; e
2) tais pinturas não se referem somente à fauna, mas também a temas abstratos, figuras que não se relacionam com o mundo material, compostas de pontos, linhas, formas geométricas, às vezes associadas à fauna. Outras vezes são detalhes de animais enxertados no corpo humano e vice-versa, formando novas e estranhas criaturas.

Nos anos de 1980, o arqueólogo David Lewis-Williams, apoiado em experimentos neu rológicos e estudos sobre as tradições xamânicas e artísticas dos bosquímanos de seu país, a África do Sul, propôs que essas pinturas são registros de visões obtidas em estados alterados de consciência, isto é, em transe – a base fenomênica para as experiências mediúnicas. Elas não são pinturas da natureza, mas de imagens percebidas pela mente em estados de consciência incomuns. Seu livro The mind in the cave – consciousness and the origins of art (A mente na caverna – consciência e as origens da arte),1 sobre a importância dos estados alterados de consciência para a evolução humana e a arte rupestre, concluiu:

[…] o limiar crucial na evolução humana foi entre duas espécies de consciência, e não simplesmente entre uma inteligência moderada e uma inteligência avançada.1 (Traduzimos.)

A conclusão de Lewis‑Williams é revolucionária: o marco mais importante da evolução da espécie humana foi o início da relação/influência entre a consciência comum e os estados alterados de consciência.

Hoje, uma geração de especialistas também acredita que algumas dessas gravuras eram similares às imagens formadas na mente do homem primitivo nos estágios de aprofundamento do transe.

O inglês Julian Bell, em seu magnífico Uma nova história da arte,2 também se perguntou por que aquelas pessoas “se recolhiam da luz do sol em passagens frias, escuras e perigosas” para praticar a pintura nas cavernas. Sua tese é:

A arte antiga gira em torno de forças e princípios invisíveis que fazem o mundo ser tal como é, mas que são ao mesmo tempo pessoas. Em outras palavras, gira em torno do que chamaríamos de “deuses”. Mais que isso, ela se dirige a essas pessoas: procura, por meio da criação de imagens, conferir-lhes uma localização e uma forma corpórea (amiúde um animal).2 (Grifamos.)

As cavernas eram o espaço físico do lar do homem pré-histórico, mas algumas eram templos, lugares dos Espíritos, dos “deuses”. Representavam uma passagem entre o mundo físico e o mundo invisível; um local sagrado e secreto que permitia, por meio de técnicas arcaicas de transe, romper o véu que separava o mundo do homem primitivo e o mundo espiritual.

Com a arte na pedra, “o invisível saltou para a visibilidade” – asseverou Julian Bell.2 Foram as primeiras imagens que deram ao homem pré-histórico algum sentido para o mundo.

As gravuras encontradas em cavernas europeias, como as de Lascaux, na França, e as de Altamira, na Espanha – considerada a Capela Sistina da Pré-História –, são famosas pela incomparável riqueza técnica e estética. Quando se descobriu a primeira galeria dessas pinturas, em Altamira, 1789, os estudiosos se recusaram a aceitar que elas datassem da Pré-História, influenciados pela proposta evolucionista, nos moldes sugeridos por Darwin. Os artistas pré-históricos pintavam com uma confiança e habilidade próprias do mundo moderno. De fato, a perícia e a beleza de suas imagens causam assombro. Picasso, ao visitá-las, disse: “Nós não aprendemos nada”.

No Brasil, entre os principais conjuntos pictóricos estão, sem dúvida, os do Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, norte de Minas Gerais. Os sedimentos encontrados nas suas camadas arqueológicas mais antigas datam de 11 mil anos. A Lapa dos Desenhos impressiona. Alguns painéis de gravuras chegam a dez metros de altura. Múltiplos temas estão pintados na rocha, trabalhados em variedade de cores, traços e detalhes. Ora são representações humanas, ora figuras de animais, formas geométricas e símbolos misteriosos.

Joaquim Perfeito da Silva,3 professor-pesquisador Ph.D. da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, defende a existência de uma conexão entre as práticas xamânicas e as pinturas do Peruaçu.

Os antropólogos denominam xamãs os indivíduos de sociedades primitivas capazes de terem contato com seres da dimensão espiritual. Ao atingirem o transe, seus corpos caem imóveis, suas almas se emancipam, desprendem-se, e são guiadas por Espíritos aliados, em excursões pelo plano espiritual – o típico transe xamânico: “o voo da alma”.

Para chegar ao estado mediúnico, os xamãs utilizam as técnicas arcaicas de êxtase: a música de ritmo repetitivo, o jejum, a privação sensorial, obtida com o isolamento na escuridão (daí, na Pré-História, o tipo especial de cavernas que escolhiam), o consumo de plantas e fungos psicoativos, com o objetivo de reduzir a atividade do córtex cerebral e abrir o mundo neurológico para outras formas e percepção da mente.

Nesse estado, os xamãs pré-históricos recebiam orientações do mundo dos Espíritos sobre a cura de doenças, as rotas de sobrevivência, ou seja, as melhores condições de clima, caça, pesca, frutos. Quando regressavam do transe, algumas vezes transferiam para as paredes das grutas as lembranças dos fenômenos psíquicos e mediúnicos experimentados, matizadas de simbolismo mágico, na forma de códigos visuais. Os animais reproduzidos estavam associados a um potencial mágico, de acordo com o poder pelo qual eram admirados na natureza.

Os fenômenos mediúnicos, portanto, apareceram já na Pré-História. E algumas grutas foram, de certo modo, as primeiras “salas mediúnicas”.

O Espírito André Luiz, através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier,4 esclareceu que o homem do período paleolítico – por ele chamado de infraprimitivo4 – ainda não dispunha de recursos em si para enfrentar o desconhecido na dimensão espiritual. Liberto do corpo físico pela morte, sentia-se como um menino amedrontado. Na rudeza da caverna em que se escondia, era surpreendido pela morte como a criança “deslumbrada à frente de paisagem maravilhosa, cuja grandeza, nem de leve, pode ainda compreender”.4

Por isso, buscava segurança no magnetismo do clã e se confinava na ideia depressiva de voltar à vida material, que lhe surgia “à imaginação como sendo a única abordável à própria mente”.4

A visita dos Espíritos, mesmo os benevolentes e sábios, estarrecia-o, levando-o a crer-se “à frente de deuses bons ou maus, cuja natureza ele próprio se incumbe de fantasiar, na exiguidade das próprias concepções”.4

Os xamãs – assim acreditamos – foram iniciadores do homem pré-histórico quanto à vida no mundo espiritual, preparando-o para outra condição individual, de consciência mais lúcida. Com os séculos, e na medida em que foi introduzido em novos campos de indagação, entendimento e trabalho, o homem passou a despertar, após a morte, mais familiarizado com a realidade espiritual e melhor capacitado para refletir sobre as relações entre os dois planos da vida, no capítulo moral da causa e efeito.

A mediunidade é uma aptidão natural. O homem caminha pelas eras desenvolvendo sua capacidade de interação com os Espíritos. O termo “mediunismo”, todavia, nomeia com mais propriedade o período primitivo desse desenvolvimento. Apenas quando a mediunidade passa a ser vivida de maneira racional e comprometida com valores éticos é que melhor se lhe conforma essa designação.

Com o Espiritismo, codificado por Allan Kardec a partir de 1857, o exercício mediúnico alcançou outro nível teórico, ético e prático, favorecendo que a mediunidade se eleve da categoria de fenômeno psíquico para a de verdadeira faculdade do ser.  

REFERÊNCIAS:

1 LEWIS-WILLIAMS, David. The mind in the cave – consciousness and the origins of art. Londres: Editora Thames & Hudson, 2002. p. 285. (1ª publicação no Reino Unido). O professor David Lewis-Williams é renomada autoridade sobre a antiga arte na rocha e leciona na Witwatersrand, a mais afamada universidade da África do Sul.

2 BELL, Julian. Uma nova história da arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008. p. 18 e 17, respectivamente. O professor Julian Bell ensina teoria e história da arte na tradicional City & Guilds of London Art School, fundada em 1879. Seus quadros são expostos em vários países e ele escreve resenhas sobre arte e livros para importantes jornais do mundo.

3 MNEME – Revista de Humanidades – dossiê arqueologias brasileiras, v. 6, n. 13, dez. 2004/jan. 2005. Artigo Uma interpretação levistraussiana das representações rupestres da Gruta do Índio, Vale do Peruaçu, MG.


4 XAVIER, Francisco C.; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois mundos. Pelo Espírito André Luiz. 27. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2014. pt. 1, cap. 12, it. Além da histogênese, p. 90; O selvagem desencarnado, p. 91-92, respectivamente

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