“Ninguém
põe vinho novo em odres velhos; caso contrário, o vinho novo estourará os
odres, derramar-se-á, e os odres ficarão inutilizados. Põe-se, antes, vinho
novo em odres novos.” 1
HAROLDO DUTRA DIAS
Reunidos na modesta
residência de Simão Pedro, em Cafarnaum, comentavam os presentes a sublimidade
da nova revelação, quando Sara, esposa de um criador de cabras da região, expôs
ao Mestre suas dificuldades para vencer o egoísmo, o ciúme eo apego, não
obstante reconhecesse a grandeza do Evangelho.
O Mestre, reconhecendo
a legitimidade das suas dúvidas e a sinceridade da sua confissão espontânea, utiliza
elementos do cotidiano daquela nobre senhora, que vivia da venda do leite de
cabras, encarecendo a necessidade de se lavar, cautelosamente, o vaso em que
ele seria depositado, sob pena de azedume de todo o líquido, recolhido com
enorme esforço.
Transpondo o ensino
para o domínio das realidades espirituais, Jesus alerta os ouvintes para a
necessidade de se adotar o mesmo cuidado no trato com a revelação divina, e
acrescenta:
– Assim é a
revelação celeste no coração humano. Se não purificamos o vaso da alma, o
conhecimento, não obstante superior, se confunde com as sujidades de nosso
íntimo, como que se degenerando, reduzindo a proporção dos bens que poderíamos
recolher. Em verdade, Moisés e os profetas foram valorosos portadores de
mensagens divinas, mas os descendentes do povo escolhido não purificaram
suficientemente o receptáculo vivo do Espírito para recebê-las. É por isto que
os nossos contemporâneos são justos e injustos, crentes e incrédulos, bons e maus
ao mesmo tempo. O leite puro dos esclarecimentos elevados penetra o coração
como alimento novo, mas aí se mistura com a ferrugem do egoísmo velho.Do
serviço renovador da alma restará, então, o vinagre da incompreensão, adiando o
trabalho efetivo do Reino de Deus.
....................................................
– O orvalho
num lírio alvo é diamante celeste, mas, na poeira da estrada, é gota lamacenta.
Não te
esqueças desta verdade simples e clara da Natureza.2
Findo o encontro com
Nicodemos, em conversa íntima com Tiago a respeito do escândalo e do resgate das
faltas, o Mestre voltou ao tema da dificuldade humana em lidar com as
revelações divinas:
O Mestre
apreendeu a amplitude da objeção e esclareceu aos discípulos, perguntando:
– Dentro da
lei de Moisés, como se verifica o processo da redenção?
Tiago meditou
um instante e respondeu:
– Também na
lei está escrito que o homem pagará “olho por olho, dente por dente”.
– Também tu,
Tiago, estás procedendo como Nicodemos – replicou Jesus com generoso sorriso. – Como todos
os homens, aliás, tens raciocinado, mas não tens sentido. Ainda não ponderaste,
talvez, que o primeiro mandamento da Lei é uma determinação de amor. Acima do “não
adulterarás”, do “não cobiçarás”,está o “amar a Deus sobre todas as coisas, de
todo o coração e de todo o entendimento”. Como poderá
alguém amar o Pai, aborrecendo-lhe a obra? Contudo, não
estranho a exiguidade de visão espiritual com que examinaste o texto dos profetas. Todas as
criaturas hão feito o mesmo. Investigando as revelações do Céu com o egoísmo que
lhes é próprio, organizaram a justiça como o edifício mais alto do idealismo
humano. E, entretanto, coloco o amor acima da justiça do mundo e tenho ensinado
que só ele cobre a multidão dos pecados. [...].3 (Grifo nosso.)
Não são raros os
comentaristas que se debruçam sobre o texto de Lucas, naquela passagem que
trata do vinho novo em odres velhos, na tentativa de opor a revelação do Velho
Testamento ao Evangelho, asseverando, equivocadamente, que os odres velhos
representam o trabalho dos profetas.
No entanto, é preciso
reconhecer que, sob a direção e assistência de Jesus, “[...] os homens
receberão sempre as revelações divinas de conformidade com a sua posição evolutiva”.4
Sendo assim, não há problema com o “vinho” da revelação divina, nossos desafios
dizem respeito aos recipientes,“odres”, que simbolizam o coração do aprendiz.
A misericórdia do
Cristo envia, de tempos em tempos, missionários e benfeitores, desde as mais remotas
eras. O próprio Cristo desceu ao Orbe, espalhando bênçãos e consolações, mas o
coração humano permanece atado ao egoísmo e ao orgulho.
Os Espíritos superiores
que conduziram o trabalho do Codificador adotaram um emblema para a Revelação
Espírita:
Porás no
cabeçalho do livro a cepa que te desenhamos, porque é o emblema do trabalho do
Criador. Aí se acham reunidos todos os princípios materiais que melhor podem
representar o corpo e o espírito. O corpo é a cepa; o espírito é a seiva; a
alma ou espírito ligado à matéria é o bago. O homem quintessencia o espírito
pelo trabalho e tu sabes que é somente pelo trabalho do corpo que o espírito adquire
conhecimentos.5
Não deve causar
admiração o fato de Jesus ter escolhido o vinho para simbolizar a revelação espiritual.
Urge renovar o coração,
libertando-o das sombras do egoísmo destruidor, para que o vinho celeste não se
transforme no vinagre das criações puramente humanas. A Doutrina Espírita é
orvalho límpido e reluzente, ofertado pelos céus. É imprescindível, porém,
purificar os vasos da alma, sob pena de
misturarmos a bênção do Cristo aos velhos enganos, que insistem em dominar
nossos corações.
Expressando, talvez,
sua preocupação com esse quadro desalentador, afirmou o Benfeitor Emmanuel:
Asseveram
muitos que o Céu estancou a fonte das dádivas, esquecendo-se de que a
generalidade dos crentes entorpeceu a capacidade de receber.
Onde a
coragem que revestia corações humildes, à frente dos leões do circo? onde a fé
que punha afirmações imortais na boca ferida dos mártires anônimos? onde os
sinais públicos das vozes celestiais? onde os leprosos limpos e os cegos
curados?
As
oportunidades do Senhor continuam
fluindo, incessantes, sobre a Terra.
A
misericórdia do Pai não mudou. A Providência
Divina é invariável em todos os tempos.
A atitude dos
cristãos, na atualidade, porém, é muito diferente. Raríssimos perseveram na doutrina
dos apóstolos, na comunhão com o Evangelho, no espírito de fraternidade, nos
serviços da fé viva.A maioria prefere os chamados “pontos de vista”, comunga
com o personalismo destruidor, fortalece a raiz do egoísmo e raciocina sem
iluminação espiritual.6
Não podemos nos
esquecer de que os puros de coração verão a Deus.
Fonte:
Reformador Ano 127 • Nº 2. 159 • Fevereiro
2009
1Bíblia de Jerusalém.
3. ed. São Paulo: PAULUS, 2004. Lucas 5:37-38.
2XAVIER, Francisco
Cândido. Jesus no lar. Pelo Espírito Neio Lúcio. 37. ed. Rio de Janeiro: FEB,
2008. Cap. 3, p. 21-22.
3XAVIER, Francisco
Cândido. Boa nova. Pelo Espírito Humberto de Campos. 3. ed. especial. 1a
reimpressão. Rio de Janeiro: FEB, 2008. Cap. 14, p.118-119.
4XAVIER, Francisco
Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 28. ed. 1ª reimpressão. Rio de
Janeiro: FEB, 2008. Questão 271.
5KARDEC, Allan. O livro
dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Ed. Comemorativa. Rio de
Janeiro: FEB, 2007. “Prolegômenos”, p. 71.
6XAVIER, Francisco
Cândido. Vinha de luz. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. Rio de Janeiro: FEB,
2008. Cap. 39, p. 97-98.
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