sexta-feira, 14 de outubro de 2016

História da Era Apostólica - O candidato a discípulo


HAROLDO DUTRA DIAS

“[...] O Compositor compõe uma música, e a obra está terminada. O Escultor  cinzela o seu mármore, e um dia a estátua está acabada. Mas a tarefa do exegeta nunca tem fim. Ele pode parar, apenas, para registrar, um tanto timidamente, as suas descobertas em certo ponto do tempo, orando para que elas tenham alguma utilidade para outras pessoas, e para que ele tenha sido fiel ao que lhe foi dado, até então. [...].”1

Na visão profética de Jeremias, Deus compara sua palavra com “um martelo que despedaça a rocha” (Jr., 23:29). E o Talmud comenta: “Tal qual a rocha que se parte em muitos fragmentos sob o golpe do martelo, assim cada palavra do Santíssimo, bendito seja, foi dividida em setenta expressões” (B. Shabat, 83b) – uma multiplicidade  de significados e interpretações. Por esta razão, diz o Midrash que “a Torah2 tem setenta faces” (Midrash Rabá, Números, 13:15).

Advertidos da complexidade  que envolve a atividade do intérprete das Escrituras, podemos examinar a bela passagem do Evangelho de Lucas, na qual o candidato a discípulo pede a Jesus a concessão de tempo, antes de aceitar o convite para segui-lo; eis o texto:

E disse a outro: Segue-me.Mas, ele disse: Permite-me ir primeiro enterrar meu pai. Mas, ele respondeu: Deixa que os mortos enterrem seus mortos; tu, porém, vai e proclama o Reino de Deus. (Lucas, 9:59-60.)

Muitos intérpretes acreditam que o pai acabara de morrer ou estava prestes a expirar.Nesse caso, o candidato a discípulo pedia singela permissão para oferecer ao cadáver do genitor a bênção da sepultura.

O sepultamento dos pais era considerado um dever religioso dos judeus, uma espécie de desdobramento do mandamento “honrar pai e mãe”. (Gênesis, 50:5; Êxodo, 20:12;Deuteronômio, 5:16; Tobias, 4:3-4.) Desse dever estavam isentos somente o sumo sacerdote e aqueles que fizeram o voto de nazireu (Levítico, 21:10-11; Números, 6:6-7).

Não ser sepultado era uma maldição, uma vergonha (Deuteronômio, 28:26; Salmos, 79:2), razão pela qual o dever do sepultamento tinha primazia sobre o estudo da
Lei, o serviço do Templo, o sacrifício da Páscoa, a observância da circuncisão, a recitação do Shemá e a leitura da Megillah (B. Berakhot 3a; B. Megillah 3b). Até os sacerdotes, que deveriam evitar a contaminação do contato com cadáveres, tinham permissão para sepultar seus pais (Levítico, 21:2-3).

A questão, posta nestes termos,  oferece enormes dificuldades ao exegeta. Joaquim Jeremias salientou algumas delas:

[...] Ao chamar para o círculo dos discípulos que o acompanhavam, Jesus imprimiu um tom de urgência ao seu apelo. A Eliseu foi permitido despedir-se da sua família (1Rs., 19:20), mas Jesus não concede essa licença (Lc., 9:61), e até mesmo rejeita o pedido de um filho que roga se lhe permita cumprir o mais elementar dever de um filho, a saber, o de sepultar o seu pai. O sepultamento se fazia na Palestina no próprio dia da morte e em seguida faziam-se dois dias de luto, quando a família enlutada recebia as expressões de condolência. Jesus não pode conceder essa prorrogação. Por que tanta urgência? [...].3

Observando essa primeira “face” da interpretação do texto, concluímos que a exigência de Jesus é superior à de Elias, que permitiu a Eliseu despedir-se de seus pais (1Reis, 19:19-21), mas iguala-se à exigência de Deus, que não permitiu ao profeta Ezequiel fazer luto por sua mulher (Ez., 24:15-24).

Jesus redefine o núcleo familiar sobre as bases da obediência à vontade de Deus, e não sobre os laços sangüíneos (Mateus, 12:46-50), advertindo que o discipulado é duro, e exige um compromisso absoluto e permanente.
Allan Kardec resume magistralmente essa idéia:

Sem discutir as palavras, deve-se aqui procurar o pensamento, que era, evidentemente, este:“Os interesses da vida futura prevalecem sobre todos os interesses e todas as considerações humanas”, porque esse pensamento está de acordo com a substância da doutrina de Jesus, ao passo que a ideia de uma renunciação à família seria a negação dessa doutrina.4

Os comentaristas orientais, por sua vez, considerando os aspectos culturais do texto, fazem observações interessantes. Ibn al-Salibi comenta:

Deixa-me ir sepultar significa: deixa-me ir e servir meu pai enquanto ele é vivo; depois que ele morrer, eu o sepultarei e virei.5

A mesma idéia é apresentada pelo comentarista árabe Sa’id:

[...] O segundo (discípulo) está olhando para um futuro longínquo, pois adia sua decisão de seguir Jesus para um tempo posterior à morte do seu pai [...]. Se o seu pai tivesse realmente morrido, por que naquele exato momento ele não estava velando o corpo dele? Na verdade, ele pretende adiar o assunto de seguir Jesus para um futuro distante, quando o seu pai, velho,morresse.Mal sabe ele que Jesus, dentro de muito pouco tempo entregará o seu espírito. [...].6

Kenneth Bailey, após ter vivido 47 anos em comunidades agrícolas do Oriente Médio, pesquisando os aspectos culturais e literários que estão por trás dos textos do Novo Testamento, afirma:

[...] A frase “enterrar o pai” é expressão idiomática tradicional que se refere especificamente aos deveres do filho de ficar em casa e cuidar de seus pais até que eles jazam em paz, para descansar com todo o respeito. Este escritor ouviu exatamente esta expressão sendo usada repetidamente entre os habitantes do Oriente Médio discutindo a emigração. Em certo ponto da conversa alguém pergunta: “Você não vai sepultar primeiro a seu pai?”. A pessoa que interroga geralmente está se dirigindo ao futuro emigrante, que tem cerca de trinta anos de idade. Geralmente, o pai em discussão ainda deve ter cerca de vinte anos para viver. A ideia é: “Você não vai ficar até cumprir o dever tradicional de tomar conta de seus pais até a sua morte, e depois pensar em emigrar?”. Outros coloquialismos expressam a mesma idéia cultural. Na língua síria coloquial de aldeias isoladas da Síria e do Iraque, quando um filho rebelde procura reafirmar a sua independência em relação ao seu pai, a repreensão final e contundente do pai é: kabit di gurtly (“Você quer me enterrar”). A ideia é: “Você quer que eu me apresse a morrer para que a minha autoridade sobre você termine, e você fique por sua própria conta” [...]. Aqui estamos tratando de expectativas da comunidade, que podem ser mal traduzidas em termos ocidentais [...]. O recruta à margem da estrada está dizendo: “A minha comunidade me faz certas exigências, e a força dessas exigências é muito grande. Certamente, o senhor não espera que eu frustre as expectativas da minha comunidade, não é?”. Não obstante, é exatamente isto que Jesus requer [...].7

Observando essa segunda “face” da interpretação do texto, concluímos que o candidato a discípulo pedia muito mais tempo do que o necessário para o sepultamento.Na verdade adiava o compromisso por tempo indeterminado.No entanto, a resposta de Jesus engloba as duas situações expostas na primeira “face” e na segunda “face” da interpretação. O sentido de prioridade, urgência e devotamento exigidos pelo chamamento do Cristo permanece intacto nas duas abordagens.

Allan Kardec, ao comentar os versículos em estudo (Lucas, 9:59--60), asseverou:

A vida espiritual é, com efeito, a verdadeira vida, é a vida normal do Espírito, sendo-lhe transitória e passageira a existência terrestre, espécie de morte, se comparada ao esplendor e à atividade da outra. O corpo não passa de simples vestimenta grosseira que temporariamente cobre o Espírito, verdadeiro grilhão que o prende à gleba terrena, do qual se sente ele feliz em libertar-se. [...] Era isso o que aquele homem não podia por si mesmo compreender. Jesus lho ensina, dizendo: Não te preocupes com o corpo, pensa antes no Espírito; vai ensinar o reino de Deus; vai dizer aos homens que a pátria deles não é a Terra, mas o céu, porquanto somente lá transcorre a verdadeira vida.8 (Grifo nosso.)

No tocante ao ensino “deixa que os mortos enterrem seus mortos”, é valiosa a lição de Emmanuel:

O cadáver é carne sem vida, enquanto que um morto é alguém que se ausenta da vida. Há muita gente que perambula nas sombras da morte sem morrer.
Trânsfugas da evolução, cerram-se entre as paredes da própria mente, cristalizados no egoísmo  ou na vaidade, negando-se a partilhar a experiência comum. Mergulham-se em sepulcros de ouro, de vício, de amargura e ilusão.  [...].9

Espiritualmente falando, apenas conhecemos um gênero temível de morte – a da consciência denegrida no mal, torturada de remorso ou paralítica nos despenhadeiros que marginam a estrada da insensatez e do crime. É chegada a época de reconhecermos que todos somos vivos na Criação Eterna.10

Urge atender ao chamado do Cristo no tempo intitulado “hoje”.

Fonte: Reformador  Ano 126 • Nº 2. 155 • Outubro 2008

1BAILEY, Kenneth E. Through peasant eyes. Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1983. Preface, p. 7.
2Torah, em sentido amplo, significa a “revelação divina”. Em sentido estrito, significa o pentateuco mosaico, ou seja, os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica.
3JEREMIAS, Joaquim. Teologia do novo testamento. São Paulo: Editora Hagnos, 2008. Cap. IV, p. 208.
4KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 127. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. XXIII, item Abandonar pai, mãe e filhos.
5IBN AL-SALIB, apud BAILEY, Kenneth E. Through peasant eyes. Combined Edition. Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1983. Chapter 2, p. 26.
6SA'ID, apud BAILEY, Kenneth E. Through peasant eyes. Combined Edition. Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1983. Chapter 2, p. 26.
7BAILEY, Kenneth E. Through peasant eyes. Combined Edition. Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1983.Chapter 2, p. 26. 8KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 127. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. XXIII, item 8.
9XAVIER, Francisco Cândido. Fonte viva. Pelo Espírito Emmanuel. 36. ed. 1a reimpressão. Rio de Janeiro: FEB, 2008.Cap. 143.
10______. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 29. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. 42.

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