terça-feira, 27 de janeiro de 2015

AS ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA


Questões acerca da natureza do Espiritismo - I

Silvio Seno Chibeni

A série de artigos que ora se inicia reproduz, com algumas adaptações formais e de conteúdo, entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. As questões originaram-se em debates do Grupo, tendo sido reunidas por Carlos Alberto Iglesia Bernardo.[1]

Os dois primeiros artigos versam sobre certos problemas terminológicos, o terceiro sobre a religião espírita e os quatro restantes sobre vários aspectos das relações entre o Espiritismo e a ciência. A exposição em forma de perguntas e respostas será mantida, por motivos didáticos.

Questão:

Existe um problema de significado de palavras que tem gerado alguma confusão até mesmo em meios espíritas. Trata-se da interpretação da própria palavra ‘Espiritismo’. Há os que interpretam a palavra em sentido amplo, como significando o estudo dos fenômenos mediúnicos e das comunicações com os Espíritos, sem referência necessária à codificação de Kardec. Outros são da opinião de que a palavra ‘Espiritismo’ refere-se apenas à doutrina codificada por Allan Kardec, empregando-se para outras noções expressões como ‘novo espiritualismo’ ou ‘espiritualismo moderno’, ‘umbanda’, ‘candomblé’, etc. Neste caso, as expressões ‘Espiritismo kardecista’ e ‘Espiritismo cristão’ serviriam apenas para dar ênfase a idéias embutidas na própria palavra ‘Espiritismo’, sendo pois redundantes. Como vê essa questão?

Resposta:

A palavra ‘Espiritismo’ tem realmente sido utilizada com acepções bastante diversas. Trata-se de um fato comum em toda linguagem natural; somente em linguagens artificiais, como certas linguagens da lógica e da matemática, consegue-se evitar a polissemia.[2] As palavras, quer escritas, quer faladas, são símbolos com os quais representamos idéias ou conceitos. Essa relação de representação é arbitrária, ou seja, associamos tal palavra a tal idéia de forma inteiramente livre e convencional.

A necessidade de comunicação, que constitui o principal objetivo da linguagem, recomenda-nos, no entanto, entrarmos em acordo com os outros integrantes de nossa comunidade lingüística acerca dessas convenções, para se evitarem desentendimentos semânticos. Nas linguagens ordinárias tal acordo estabelece-se de forma natural e muitas vezes inconsciente, possibilitando um razoável grau de comunicação, pelo menos quanto às noções do dia-a-dia. Quando surgem noções novas e complexas, porém, costuma ocorrer um período de indefinição ou confusão, que pode se prolongar muito, se não tomarmos as providências cabíveis, para que todos utilizem as mesmas palavras para designá-las.

Quando Allan Kardec deu início a uma nova abordagem dos fenômenos mediúnicos e anímicos – que sempre existiram, naturalmente –, preocupou-se com esse ponto. Percebendo que o desenvolvimento de uma nova teoria tipicamente envolve a criação de novos conceitos, cunhou diversos termos, nos casos em que se fazia absolutamente necessário, como ‘Espiritismo’, ‘espírita’, ‘perispírito’, ‘mediunidade’ e outros tantos, utilizados, por exemplo, para designar diversas noções da teoria dos processos mediúnicos. Fez isso de forma deliberada e explícita, em diversas de suas obras. Além desses neologismos, a teoria espírita exigiu a alteração dos significados de muitas palavras já em uso, como é o caso de ‘Deus’, ‘anjo’, ‘demônio’, ‘céu’, ‘inferno’, ‘bem’, ‘mal’, etc. Nesses casos também Kardec indicou claramente as novas acepções dadas aos vocábulos.

Não obstante todas as precauções tomadas por Kardec, é inegável que muitas das palavras cuja acepção ele procurou fixar a bem da inteligibilidade vêm sofrendo desvios de significado por vezes bastante grandes, como se ressalta corretamente na questão, relativamente à própria palavra ‘Espiritismo’. Fatos desse gênero ocorrem também nas diversas disciplinas acadêmicas, porém em menor escala, dadas as peculiaridades das correspondentes comunidades lingüísticas, formadas por indivíduos que passaram por longo e rigoroso (idealmente!) processo de formação. No caso do Espiritismo, porém, não há e nem deve haver uma formação oficial dos espíritas. A preservação doutrinária e, por conseguinte, lingüística, do Espiritismo fica, assim, na dependência do empenho de cada pessoa e de cada instituição (centro, federação, editora, associação) em estudar profundamente os textos básicos, mantendo-os constantemente como referência ou paradigma, ainda que complementações e ajustes periféricos se façam eventualmente necessários. [3]

Ora, é isso o que pouco se vê no movimento espírita atualmente. Nem todos lêem; poucos estudam; raros compreendem. Faltam reuniões de estudo de Espiritismo em muitos centros. Editoras, revistas e jornais proliferam em grande número, muitas vezes publicando sem critérios doutrinários rigorosos. O resultado não poderia ser outro: confusões, desorientações e disputas muito freqüentes.

O que fazer? Um pouco de reflexão mostra que os problemas de linguagem do movimento espírita não podem ser resolvidos com imposições deste ou daquele teor, ou de apelo a dicionários. Os filósofos contemporâneos têm ressaltado que o conteúdo semântico do vocabulário de uma disciplina pode ser delimitado por meio de definições explícitas, mas apenas parcial e preliminarmente. O que confere significado completo e estável às palavras é sua utilização em corpos teóricos coerentes e com potencial elucidativo de uma determinada gama de fenômenos. Considere-se, por comparação, as definições de ‘massa’, ‘força impressa’, ‘inércia’, etc. que Newton fez figurar no início de sua monumental obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (1687). É claro que elas servem para indicar algo, porém se forem isoladas da teoria mecânica desenvolvida no restante do livro perderão inteligibilidade e conteúdo cognitivo. Tomando agora um exemplo negativo, analisem-se as propostas de investigação que surgiram com a pretensão de substituir o Espiritismo, como a metapsíquica e a parapsicologia. À falta de teorias completas e coerentes – pois que não as têm – tais disciplinas viram-se e ainda vêem-se a braços com notória proliferação terminológica que, não obstante sua complexidade, pouco parece contribuir para a veiculação de conceitos inteligíveis, com conteúdo empírico (isto é, que expressem a realidade dos fatos) e fertilidade heurística (ou seja, que contribuam para o desenvolvimento do conhecimento).

No caso do Espiritismo, Kardec e alguns dos seus continuadores mais lúcidos trataram de desenvolver o arcabouço lingüístico simultaneamente com uma teoria dotada de todas as principais características de uma boa teoria científica, e na medida estrita da necessidade de expressão simbólica dos conceitos envolvidos. Desse modo, para o estudioso atento e esclarecido do Espiritismo não há lugar para dúvidas e mal-entendidos acerca das palavras, noções e princípios fundamentais. As confusões que se notam nos meios espíritas ou semi-espíritas não provêm de falhas estruturais ou conceituais no programa de pesquisa espírita iniciado por Kardec, mas da falta de preparo e de estudo sério, conforme já ressaltei. O remédio é, pois, único e fácil de encontrar, mas de difícil aplicação. Requer-se uma mudança de atitude intelectual e prática, que começa pelo reconhecimento do valor paradigmático das realizações de Kardec, passa pela disposição de colocar a doutrina acima de vaidosas concepções pessoais e falsas necessidades de modernização, e culmina com a instituição de uma política sistemática e pertinaz de valorização do estudo e do rigor doutrinário. (É justo registrar aqui que é ao longo dessas linhas que se vem pautando a atuação de diversos indivíduos e instituições respeitáveis no movimento espírita, do tempo de Kardec aos nossos dias, cabendo destacar, por seu vulto e ancianidade, as contribuições da Federação Espírita Brasileira.)

Para finalizar, retomo de forma mais tópica a questão formulada. O bom senso indica que se deve reservar a palavra ‘Espiritismo’ para designar aquilo para que foi cunhada, ou seja, a doutrina, teoria, paradigma, ou programa de pesquisa iniciado por Kardec. Devemos notar que já na primeira edição do Livro dos Espíritos (1857) Kardec traça a distinção clara entre o espiritualismo e a doutrina espiritualista específica cujos fundamentos essa obra estava lançando – o Espiritismo. Dada a importância do assunto, Kardec aborda-o já no primeiro parágrafo da Introdução. Quando essa Introdução é reformulada e ampliada, na segunda edição (1860), o trecho em questão é mantido quase sem alteração, figurando ainda no parágrafo inicial do livro, valendo a pena ser relido:

Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Essas considerações são de uma clareza impressionante. Agora se outras pessoas utilizam a palavra ‘Espiritismo’ com acepções diversas da original, para designar, por exemplo, o espiritualismo ou o “novo espiritualismo”, ou seitas mediunistas afro-brasileiras, não podemos obrigá-las a empregar outras palavras, dado o respeito que devemos ter pela liberdade de expressão. Notando, porém, que existe uma dependência da preservação semântica de uma teoria relativamente à integridade do próprio conteúdo da teoria, vemos que a única medida eficaz que podemos tomar é a de zelar pela preservação da teoria espírita e insistir no uso original do termo ‘Espiritismo’ (e cognatos) em todas as ocasiões que se nos deparem, fazendo ver as diferenças doutrinárias existentes entre as abordagens.

Há, ou podem ser criadas, palavras em número suficiente para designar sem ambigüidade todas as teorias, doutrinas ou seitas. Não creio que devamos apelar para artifícios aparentemente mais fáceis, como o de acrescentar adjetivos diversos (‘kardecista’, ‘cristão’, etc.) ao termo ‘Espiritismo’. Se descuidarmos da preservação doutrinária nas instituições e publicações, tais expressões sofrerão, a seu turno, desvios de significado, que terão de ser corrigidos novamente com mais acréscimos, num processo sem fim certo.

* * *

No próximo artigo desta série será analisada criticamente a proposta de revisão de certos termos utilizados no Espiritismo, que alguns alegam ser necessária para a “modernização” da doutrina ou para sua “adaptação” ao progresso da ciência.

Referências:

(Estes artigos e outros que tratam de assuntos correlacionados estão disponíveis também na Internet. Consulte-se o site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)

CHAGAS, A. P. “Polissemias no Espiritismo”, Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1996, p. 247-49.
CHIBENI, S. S. “Por que Allan Kardec?” Reformador, abril 1986, p. 102-3.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
XAVIER Jr., A. L. “Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”, Reformador, agosto de 1995, p. 244-46.

Notas

[1] A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões. Nas transcrições de trechos das obras clássicas de Allan Kardec utilizei as excelentes traduções publicadas pela Federação Espírita Brasileira, confrontando-as com os originais franceses.

[2] Um termo polissêmico é aquele que possui mais de um significado. Para um exame de alguns termos que têm sido empregados polissemicamente em textos espíritas, com efeitos negativos, ver o artigo de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo”. Consulte-se também o artigo de Ademir L. Xavier Jr. citado na lista de referências bibliográficas.

[3] Para uma análise da noção de paradigma e de seu papel na ciência e no Espiritismo, veja-se o artigo “O paradigma espírita”, citado na lista de referências bibliográficas. A solidez científica e filosófica dos fundamentos lançados por Kardec é abordada no texto “A excelência metodológica do Espiritismo”. Consulte-se também, a esse respeito, o artigo “Por que Allan Kardec?”.

Artigo publicado em Reformador, julho de 1999, pp. 212-214.


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A RELIGIÃO ESPÍRITA
REVISÃO DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS NO ESPIRITISMO
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR QUE ALLAN KARDEC?
O PARADIGMA ESPÍRITA
A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA


Ademir L. Xavier Jr.

1 - Considerações Iniciais:

A nosso ver, têm ocorrido recentemente alguns abusos que se exteriorizam na forma de afirmações, que acreditamos um tanto descabidas, publicadas em diversos periódicos espíritas e obras diversas. Elas são todas concernentes ao contexto em que o Espiritismo pode ser (pretensamente) inserido no conjunto das ciências modernas. Tais abusos tentam, de uma maneira algo desesperada, não só estabelecer uma possível conexão entre o Espiritismo e as demais ciências ordinárias (principalmente a Biologia, Química e notadamente a Física) como também justificar a Doutrina Espírita diante de tais disciplinas. Nosso objetivo aqui é estabelecer as causas principais de tal movimento, apontando sua prescindibilidade e seu aspecto prejudicial ao Movimento Espírita.

O que move a tentativa acima mencionada de justificar a importância do Espiritismo via ciência, bem como sua possível interpretação científica diante de outras doutrinas científicas são, basicamente, a falta de compreensão do aspecto científico real do Espiritismo, a ignorância em relação ao verdadeiro significado da Ciência (como ela opera e se estabelece) e, de algum modo, um certo gosto por novidades, modernismos e fatos extraordinários.

O aspecto científico do Espiritismo anunciado por Kardec está, ao que parece, longe de ser compreendido em sua última expressão dentro do atual Movimento Espírita. Não compreendendo os ingredientes essenciais e suficientes que identificam uma doutrina como sendo genuinamente científica (ingredientes que o Espiritismo possui completamente), busca-se uma adequação da Doutrina Espírita dentro dos moldes do puro empirismo, ou de outra forma, lançando mão de argumentos em torno do indutivismo ingênuo. Há, de uma maneira ou de outra, um forte apelo ao senso comum.

Para avaliarmos completamente o aspecto científico do Espiritismo é necessário o emprego da análise moderna da Filosofia, mais precisamente o ramo que estuda a teoria do conhecimento científico ou Epistemologia da Ciência. Não entraremos aqui nos detalhes dessa análise, aliás um tanto complexa, afirmamos apenas que tal estudo já pode ser encontrado, e indicamos ao leitor o lugar onde encontrá-lo (ver Chibeni 1988 e 1994).

Uma possível fonte de confusão entre a relação Espiritismo e as demais ciências é gerada, muitas vezes, pela falta de significado preciso para certas palavras. Os exemplos são muitos, um clássico é o da palavra energia. Há diversos significados ligados a essa palavra, e é necessário imenso cuidado em se especificar claramente tais significados. Na Física Clássica, por exemplo, ela designa uma qualidade inerente aos corpos materiais, que permanece latente até que certas condições sejam satisfeitas. Não é infreqüente o uso do termo energia por diversos autores espirituais, mas nesse caso, nenhuma tentativa de associação direta com o significado implicado pela Física pode ser inferido. Existem, entretanto, muitos autores (encarnados, é claro!) que parecem confundir, não poucas vezes, as duas acepções possíveis, sugerindo uma tradução da energia de que falam os Espíritos em termos da energia usada na Física, nossa velha conhecida.

De outras vezes, a precipitada justificativa científica do Espiritismo segue a freqüente moda de justificação científica feita em outras doutrinas, como por exemplo a Teosofia e doutrinas orientalistas (ver, por exemplo, Phillips 1980). Essa justificativa caracteriza-se por uma tentativa de inserção de certas idéias religiosas, na maioria das vezes de origem oriental, no contexto de recentíssimas descobertas ou modelos da Física contemporânea. É natural que haja pessoas que pensem ser necessário o mesmo procedimento com o Espiritismo. Não compreendem, entretanto, que a Doutrina Espírita já possui uma base científica própria, e que a natureza do fenômeno que ela estuda, bem como o estado atual de nosso conhecimento sobre a matéria não permitem uma conexão tão direta entre a Física, por exemplo, e o Espiritismo. Além disso, é necessário que se saiba que muitos dos modernos modelos da Física (como exemplo, o diversos modelos teóricos de interação entre partículas e campos no microcosmo) sofrem radicais revisões todos os dias. O Espiritismo, por sua vez, tem uma estrutura muito mais estável, porque repousa em fenômenos de caráter mais diretamente observável, sendo suas afirmações de muito maior confiança7. É certo que o Espiritismo guarda uma relação com as outras ciências, mas os fatos espíritas, por si sós, já asseguram uma especial independência de seu objeto de estudo com o das demais ciências materiais. Não obstante, essa independência foi muito bem identificada e analisada por Kardec em O que é o Espiritismo.

Dentro do Movimento Espírita, muitas vezes a anunciação de descobertas gerais das ciências materiais (como a Física, com seus novos modelos acerca do funcionamento do Universo) é feita, em geral, tendo por base obras de divulgação científica (ver Chagas 1995) que, a nosso ver, pecam por falta de precisão da discussão das idéias, sem contar com a dificuldade inerente de se expressarem conceitos altamente abstratos, muitas vezes (como, por exemplo, a unificação do espaço e do tempo em um contínuo quadri-dimensional, a dilatação do tempo, etc., da Teoria da Relatividade Restrita) em termos de uma linguagem mais acessível ao leigo. Isso implica, idealmente, a tentativa de fazer o não especialista compreender plenamente tais conceitos, tais quais são dentro da teoria em que estão inseridos. É bastante clara a impossibilidade de tal tentativa. Se desprezarmos os erros grosseiros de tradução que muitos textos de divulgação trazem, quando de origem estrangeira, concluímos que eles podem, no máximo, passar ao leitor não especialista uma idéia vaga de tais conceitos. Ora, assim sendo, uma importante questão seria: Que valor pode ter a tentativa de se relacionar conceitos e fundamentos das ciências ordinárias com fundamentos importas de Doutrina Espírita, quando tal intento é feito tão-só baseando-se em textos de propaganda científica? A precariedade de tradução, a dificuldade de expressão apropriada dos conceitos, bem como a transitoriedade das teorias que tais textos podem trazer são suficientes para termos uma idéias clara da resposta a essa questão.

Relacionada à dificuldade de entendimento do aspecto científico real do Espiritismo está a profunda falta de informação existente nos meios espíritas ( o que é, no nosso entender, bastante natural) e, por que não dizer, acadêmicos (o que já não parece tão natural assim), em torno do conceito de Ciência. Mais uma vez, um apelo à Epistemologia se faz necessário (ver Chibeni 1988 e 1994, Chalmers 1976). As implicações dessa ignorância são as eternas e mal fundamentadas críticas ao Espiritismo feitas por diversas escolas parapsicológicas e demais adeptos das denominadas "ciências psi" (Chibeni 1988). Esses rejeitam, explicitamente, a idéia do Espírito como causa envolvida em grande parte, se não em todos, dos posteriormente denominados "fenômenos paranormais". Assim agindo, queremos deixar claro ao leitor, tais escolas são levadas por uma idéia ultrapassada de Ciência, bem como por concepções obsoletas do método científico.

2 - Um Exemplo:

Um exemplo um tanto exagerado das confusões com relação às questões expostas anteriormente pode ser encontrado no artigo "Matéria e antimatéria" (Reformador, abril 1994). O autor inicia dizendo que "a ciência terrestre chama de matéria tudo o que tem energia e massa, é sólido (...) ou fluídico (...) e ocupa lugar no espaço e no tempo". Essa afirmação, de caráter geral, confere à matéria determinadas propriedades como, por exemplo, massa, mas não pode ser usada para caracterizar certos tipos de matéria no universo. O ponto crítico está onde é afirmado:

"É de antimatéria o plano vital em que se movem os Espíritos desencarnados."

E, mais abaixo:

"É pela diferença de sinalização de carga elétrica dos elementos que formam o 'plano invisível' que, em condições normais, não o percebemos fisicamente."

Em nenhum lugar dentro da bibliografia espírita, escrita por autores abalizados e de peso, podem ser encontradas ou sequer deduzidas tais afirmações. Muito ao contrário, das obras de Kardec tem-se claramente que o mundo espiritual constitui um universo paralelo, totalmente independente do material, tanto que, ainda que o mundo material perecesse, o espiritual continuaria existindo. Isso porque matéria e espírito são dois princípios independentes no universo com uma origem desconhecida. As questões 25, 26, 27, 84, 85 e 86 de O livro dos Espíritos, são suficientes para esclarecer quaisquer dúvidas. Vejamos, por exemplo, a questão 86:

"O mundo corporal poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência do mundo espírita?

Decerto. Eles são independentes; contudo, é incessante a correlação entre ambos, porquanto um sobre o outro incessantemente reagem."

Por outro lado, o que a Física estabelece como certo com respeito à antimatéira torna absurdas as afirmações propostas acima relacionadas ao mundo espiritual. Conforme H. Alvén (1965), que foi ganhador do Prêmio Nobel em 1970, em "Propriedades da Antimatéria":

"A teoria de Dirac do elétron e a descoberta do pósitron criou a crença de que toda partícula possui sua correspondente antipartícula. Essa crença foi confirmada pela descoberta do antipróton. Todas as outras partículas parecem Ter também antipartículas. Disso se conclui que os "antiátomos" devem existir, e são semelhantes aos átomos ordinários, com núcleos formados de antiprótons e nêutrons envoltos por pósitrons. Tais antiátomos devem Ter as mesmas propriedades dos átomos ordinários. Eles devem formar compostos químicos similares aos compostos químicos ordinários, que emitem linhas espectrais a exatamente os mesmos comprimentos de onde dos átomos ordinários." (Grifo nosso.)

Assim sendo, as propriedades da antimatéria são as mesmas da matéria ordinária, ou, em outros termos, antimatéria é o nome dado a um tipo especial da matéria! Por outro lado, a existência da antimatéria foi confirmada experimentalmente 10, assim como a impossibilidade de coexistência simultânea de matéria e antimatéria. Essa é, também, a causa da inexistência natural de antimatéria em nosso mundo. Está claro, entretanto, que de nenhum lugar, nem do atual conhecimento da Física, nem da Doutrina Espírita, semelhantes afirmações podem ser inferidas.

3 - A Não Necessidade e os Perigos:

Do que foi exposto, é bastante óbvio que as tentativas de inserção do Espiritismo no contexto das modernas teorias científicas, bem como sua justificação diante da academia estabelecida, o que visa um tanto à sua valorização, são totalmente desnecessárias. De fato, elas são desnecessárias porque, tendo como objetivo de estudo algo que não se identifica como sendo a matéria ordinária, o Espiritismo consegue suficiente independência com relação às demais doutrinas científicas que estudam a matéria, para caracterizar-se como um ramo independente de conhecimento. Não só por isso, pelo caráter harmônico com que os princípios espíritas interagem entre si, fruto de sua boa fundamentação, pela maneira com que estão estabelecidos tais princípios e por suas bases experimentais, pode-se considerar a Doutrina Espírita como uma teoria genuinamente científica no sentido epistemológico moderno. Essa doutrina tem como objetivo o estudo do elemento espiritual, e não se confunde de nenhuma maneira com as demais ciências, embora guarde alguma relação com elas. Lembramos, também, que Allan Kardec jamais se atreveu a tentar interpretar os novos conceitos que descobriu de acordo com os conhecimentos científicos de sua época. Se o tivesse feito, não sabemos quais teriam sido as conseqüências, desastrosas com certeza, ao posterior desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita.

Os prejuízos de uma campanha indiscriminada que visa a ressaltar ou inferir precipitadamente semelhante relação podem ser facilmente previstos. Tais prejuízos podem não ser grandes para aqueles que já possuem um conhecimento considerável do corpo doutrinário espírita, mas o que dizer dos iniciante? Quantas confusões totalmente desnecessárias podem ser evitadas nas mente dos principiantes em Espiritismo se certas afirmações simplesmente não forem feitas? Acreditamos não serem poucas.

O verdadeiro trabalho espírita está no aprimoramento do espírito humano em sua bagagem moral, na sublimação dos instintos humanos, vertendo-os em valores divinos, em suma, no progresso moral do mundo. Para isso, sim, o estudo acurado e cauteloso é imprescindível. Também por isso, experimentações científicas detalhadas no campo espírita só podem ser feitas com a expressa colaboração do Plano Espiritual superior que, para isso, exige uma definitiva demonstração desses valores divinos em nós. (Ver No Mundo Maior, de André Luiz, p. 31.)

Referências:

Chibeni, S. S. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
Chibeni, S. S. "O paradigma espírita", Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.
Phillips, S. M. Extra-Sensory perception of Quarks, Wheaton, Illinois, Theosophical Publishing House, 1980.
Kardec, A. O que é o Espiritismo, 36a ed., FEB.
------. O livro dos Espíritos, 75a ed. FEB.
Chagas, A. P. "A Ciência confirma o Espiritismo?" Reformador, jul. 1995.
Chalmers, A. F. What is this thing called science? St. Lucia, University of Queensland Press, 1976.
"Matéria e antimatéria", Reformador, abr. 1994.
Alvén, H. "Antimatter and the Development of the Metagalaxy", Rev. Modern Phys., vol. 37, p. 652, 1965.
André Luiz, No Mundo Maior (psic. F. C. Xavier), 19a ed., FEB.

(Artigo publicado em Reformador de agosto de 1995, pp. 244-46. Digitado por Cristina em 5/98)Ademir L. Xavier Jr.

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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO


Silvio Seno Chibeni

Seções:

Introdução

O Espiritismo é científico
"O Espiritismo não é da alçada da ciência" As deficiências das chamadas "ciências psi" O Espiritismo é religioso

1. Introdução

O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.

Allan Kardec, Le Livre des Médiuns, § 14, n. 8. [nota 1]

Ao procurarmos aplicar esses critérios para a caracterização de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daquele que o têm pretendido ser durante os mais de cento e vinte anos que se passaram desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem possibilidade de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda está para aparecer", em patente demonstração da excelência metodológica do Espiritismo, da solidez de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente aos demais sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo objeto de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento espiritual.

Essa tese foi tão lucidamente defendida pelo próprio Kardec em várias de usas obras que acreditamos redundantes quaisquer argumentações posteriores. Nosso propósito aqui será, portanto, tão unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados pelo Codificador da Doutrina Espírita, comentando-os dentro do contexto de certas dificuldades encontradas por alguns espíritas quando da análise comparativa do Espiritismo com "sistemas" alternativos.

Não é inexpressivo o número de indivíduos e instituições ditos espíritas empenhados na busca de "novidades" que possam, segundo pensam, "atualizar" a Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la às conquistas da Ciência". Nesse sentido, procuram ressaltar e dar cobertura - inclusive através de periódicos espíritas, ciclos de palestras, etc - a pesquisadores das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles detentores de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio desenvolvimento da Doutrina e do conhecimento humano em geral.

2. O Espiritismo é científico

O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.

Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme, Preâmbulo.

Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.

A tarefa de determinar quais as características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência. Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito freqüente encontrar-se entre os não filósofos.

A compreensão dessa visão "antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas concepções que propuseram requer estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente argumentação. [nota 2]

Muito simplificadamente, poderíamos dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira "espontânea", certa e infalível, as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituiria então uma teoria científica.

Conforme mencionamos, essa visão "clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolve pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que ele seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses livremente concebidas, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.

Imre Lakatos sistematizou as novas idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica desenvolve-se em torno do que denominou "programa científico de pesquisa". [nota 3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário, será dito "degenerante".

Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos: novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém, o programa tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.

Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressivo, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.

Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.

Allan Kardec percebeu, em admirável antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma obra prima de argumentação filosófica que, embora visando à elucidação de uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:

É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.

No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:

Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo [...].

Essa "sanção racional" é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que esperavam". Prossegue então Kardec:

O inverso se dará com as que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.

Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:

E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudaste os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?

Mais adiante, no diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de convicção") Kardec coloca a questão em termos explícitos:

Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.

Quantos me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?

A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.

Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja, coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.

No decorrer das próximas seções a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberá indiretamente mais elementos de comprovação.

3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"

A frase que serve de título a esta seção foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar como introdução de O Livro dos Espíritos. Esse item trata especificamente da relações entre a Doutrina Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui como o conjunto das ciências ordinárias, "oficiais", das academias, tal como a Física, a Química e a Biologia. [nota 4]

Apesar da clareza e da robustez argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto, não somente nessa seção de O Livro dos Espíritos, mas também em outras de suas obras, especialmente em O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A Gênese, Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação, mesmo por parte de espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos que não acrescentando nada ao que já disse o preclaro Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos. [nota 5]

Começaremos notando que a afirmação de Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela palavra portanto, o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente adotou, Kardec ofereceu um argumento à assertiva, que, dada a sua importância, não poderia ser postulada dogmaticamente.

Esse argumento encontra-se no próprio parágrafo que contém a assertiva em discussão:

As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas de mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos processos comuns de investigações é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.

É admirável a simplicidade do argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios diferentes de fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento espiritual, a segunda daqueles concernentes ao elemento material. Têm, portanto, métodos específicos e objetivos distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.

Notemos que não se pode confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência - o que procuramos mostrar na seção anterior - com a assunção falsa de que ele pertence ao domínio da Ciência (ou seja, da Física, da Química e da Biologia).

Um pouco adiante, Kardec enfatiza:

Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém, desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis de Humanidade, ela escapa à competência da ciência material, visto não poder exprimir-se nem por algarismos, nem pela força mecânica.

Estudando domínios diferentes e complementares, "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente", conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese.

Antes de prosseguirmos, vejamos como Kardec reapresenta o argumento em estudo em O que é Espiritismo. Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta resposta ao Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo), Kardec lembra uma vez que

os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido.

E, na resposta seguinte, enfatiza:

Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química, visto que nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências que lhe são o agente fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões.

No diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Oposição da Ciência") Kardec enfoca outro aspecto da questão, igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência da Ciência e do Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas mais autorizados que as demais pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo. Tal questão é ainda atual, já que vemos muitos espíritas na posição em que Kardec situa o Céptico do diálogo: afligem-se por buscar o apoio dos cientistas. "Admito perfeitamente", diz o Céptico, "que eles não são infalíveis; mas não é menos verdade que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa, e que, se ela estivesse do vosso lado, daria grande peso ao vosso sistema".

A réplica de Kardec vem, como sempre, vazada no bom senso e na lógica:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora da sua competência.
Se quiserdes edificar uma casa, confiaríeis esse trabalho a um músico?
Se estiverdes enfermo, far-vos-ei tratar por um arquiteto?
Quando estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino?
Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir solução a um químico ou a um astrônomo?
Não, cada um em sua especialidade.
As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular.; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].
As corporações científicas não devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec mostrou que nem o estudo do Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas em posição privilegiada para sobre ele opinar. Foi mesmo além: dada a freqüente distorção que o envolvimento com sua especialidade impões à sua maneira de apreciar as coisas, suas opiniões podem até mesmo estar mais sujeitas a equívocos. No referido item de O Livro dos Espíritos Kardec considera:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.

Nada obsta, evidentemente, a que os cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem e avaliem nessa condição. Um pouco abaixo do trecho que acabamos de transcrever, Kardec pronuncia-se nesse sentido:

O Espiritismo é o resultado de uma convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].
Quando as crenças espíritas se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se dará com o que tem acontecido com todas as idéias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

Ainda um último aspecto está envolvido nas relações entre o Espiritismo e a Ciência: a necessidade que ele tem de não entrar em descompasso com o progresso científico.

O local clássico onde Kardec tratou desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese. Começa considerando que "apoiando-se em fatos [a revelação espírita] tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva". Esse caráter essencial do Espiritismo resulta de sua natureza genuinamente científica: embora o núcleo de seus princípios básicos permaneça inalterado, complementações e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão protetor o colocam sempre em concordância com as novas descobertas. É isso que se tem verificado ao longo da história do Espiritismo. O núcleo doutrinário fundamental contido em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas do próprio Kardec, desdobrado e ampliado nos estudos que resultaram nas demais obras da Codificação. Hoje em dia, a vasta literatura mediúnica legitimamente espírita ampliou, por exemplo, os informes sobre o mundo espiritual. E isso, repetimos, sem confronto com os princípios básicos.

No entanto, é preciso cautela no entendimento da progressividade do Espiritismo.

Primeiro, ela deve ocorrer de acordo com a heurística positiva do próprio programa espírita, sem recurso a elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua consistência.

Depois, a harmonia com as conquistas da Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer preço, visto estar ela, em suas proposições abstratas, constantemente sujeita a enganos e retificações. Kardec percebeu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido antes das grandes revoluções científicas do início de nosso século. No item de O Livro dos Espíritos de que estamos tratando encontramos este trecho:

Desde que a Ciência sai da observação material dos fatos, para os apreciar e explicar, o campo está aberto às conjecturas [...]. Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem alternadamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades incontestáveis?
Aliás, é interessante notar que se Kardec não tivesse imprimido ao programa espírita a independência e autonomia que lhe imprimiu, ajustando-o, ao invés, de modo irrestrito agraves teorias científicas da época, ele teria, como conseqüência das aludidas revoluções, soçobrado irremediavelmente.

Aparentemente, os que em nossos dias advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda não se deram conta desse fato, nem perceberam que no referido parágrafo de A Gênese Kardec deixou clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:

Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele suicidaria.
Notemos que o "suicídio" do Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua estagnação (aspecto esse sempre lembrado), mas também de sua assimilação de doutrinas que não hajam atingido o estado de "verdades práticas"(o que em geral passa despercebido, por ter ficado implícito no texto).

Agora é certo que não há nenhum princípio científico estável, nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.

4. As deficiências das chamadas "ciências psi"

Todas as teorias que pretendem elucidar os fenômenos mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua insuficiência e falsidade.

Emmanuel

Essa assertiva de Emmanuel, que abre o Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica (Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier.), há mais de cinqüenta anos, pode, a alguns, parecer demasiadamente forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem dito o iluminado Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos fatos. As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda não alcançadas àquela época, evidenciam inequivocamente a correção desse juízo. É o que tentaremos resumidamente mostrar nesta seção.

A primeira linha de pesquisa não espírita dos fenômenos espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a constituir uma "escola" foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas duas primeiras décadas desse século e culminou com a publicação em Paris em 1922 do clássico Traité de Métapsychique, de Charles Richet. Logo após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo pioneiro foi o norte-americano J. B. Rhine, que em 1937 publicou seu New Frontiers of the Mind. De lá para cá, sob a inspiração dessa disciplina, surgiram e continuam surgindo, em vertiginosa multiplicação, várias outras linhas de investigação dos chamados "fenômenos paranormais". Talvez não seja exagero afirmar que elas são quase tão numerosas quanto os pesquisadores, cada um com seu "sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade, de ciências psi o conjunto de tais sistemas, muito embora, como veremos, não sejam ciências genuínas.

Entre os traços comuns dessas disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade, a suposição de que aderem ao "método científico", o emprego de métodos quantitativos e de aparelhos, uma certa aversão a "teorias" etc.

Ocorre que à época do nascimento da Parapsicologia, ou seja, nas décadas de 20 e 30, a Filosofia da Ciência vivia o apogeu do Positivismo Lógico. Essa doutrina filosófica representou, por assim dizer, a tentativa suprema de articulação da visão clássica de ciência, que mencionamos anteriormente. Em que pese o empenho dos maiores filósofos da época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular e definitiva, diante dos argumentos contra ele levantados, principalmente pelos filósofos que citamos na seção 2 (Reformador, novembro de 1988, págs. 328-331).

Apesar disso, tal foi a intensidade desse movimento filosófico, que exerceu uma influência sem precedentes sobre os cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso, perdurando até nossos dias, com conseqüências funestas para a Ciência.

Inevitavelmente, a Parapsicologia, que nascia àquela época com pretensões à cientificidade, procurou seguir de forma estrita os cânones preconizados pelo Positivismo Lógico para a caracterização de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com a Sociologia e com a Psicologia, que também andavam à procura de cientificidade. A propósito, é significativo o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido psicólogos.)

A conseqüência não poderia ser outra: essa nova disciplina carregou consigo, desde a sua concepção, as deficiências graves da visão lógico-positivista de ciência, vindo a adotar métodos incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo um ideal de cientificidade completamente ilusório. E atrás dela vieram as demais, a despeito da louvável boa intenção da maioria de seus profitentes.

Para ilustrar essa situação, consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos em que incorrem essas pretensas ciências.

a. Seguindo a velha "receita", procuram acumular fatos sobre fatos, sem o auxílio de um corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo e anti-científico é esse procedimento, e quão bem Kardec compreendeu tal realidade.

b. Quando explicações são dadas, são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado" por uma hipótese isolada. Desse modo, mesmo se artificialmente agruparmos essas hipóteses, não formaremos senão um todo inconsistente, o que viola a própria Lógica. A moderna Filosofia nem mesmo considera explicações genuínas "explicações" isoladas de fatos.

c. As explicações são, via de regra, ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem explicar. Nas admiráveis refutações aos contraditores do Espiritismo contidas em várias de suas obras, notadamente em O que é o Espiritismo (Cap. I), O Livro dos Médiuns (Primeira Parte, Cap. IV), ,O Céu e o Inferno (Primeira Parte) e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI), Allan Kardec, com a agudeza de espírito que o caracterizava, já apontava esse tipo de problema. Na seção "Falsas explicações dos fenômenos", do primeiro desses livros, Kardec pergunta:

Como podem pretender dar conta dos fenômenos espíritas [através da hipótese da alucinação] sem serem antes capazes de explicar sua explicação?

E mais adiante acrescenta:

É realmente curioso observar os contraditores empenharem-se na busca de causas cem vezes mais extraordinárias e difíceis de compreender do que aquelas que lhes apresenta o Espiritismo.

d. Outro tipo de pseudo-explicação comumente encontrada são as explicações puramente nominais: carecem de qualquer substância, consistindo unicamente do emprego de fraseologia excêntrica na descrição dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no parágrafo que segue imediatamente ao que abre esta seção:

Em vão, procura-se complicar a questão com termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas [...].

Quando "teorias" são fornecidas, não dão conta de todos os fatos. Aqui também Kardec já alertou (O Livro dos Médiuns, parágrafo 42):

d. O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder dar razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela é falsa, incompleta, ou por demais absoluta.
Muitos fatos relevantes simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar: i de idéias preconcebidas, como no caso daquelas que negam a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse problema atinge as raias do absurdo no horror que alguns investigadores têm pelos médiuns - exatamente o manancial mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou ii. da falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos. Vimos acima com Kardec quão longe está o Espiritismo de incorrer em semelhantes enganos.

f. Emprego de técnicas de investigação inadequadas. O caso típico e mais importante é o recurso ao "método quantitativo". Como se sabe, tal método constitui uma das maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências psi", que julgam assim estar seguindo os afortunados caminhos da Física e da Química. Ora, se indubitavelmente a análise das quantidades desempenha nessas ciências um papel importante (embora não exclusivo!), não se segue daí que deva ser igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos completamente diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis (para dizermos pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações detalhadas de episódios e coisas desconhecidas) por medidas de desvios estatísticos em experimentos de identificação de cartas de baralho, ou similares. Não que estas últimas sejam irrelevantes; mas a evidência que podem dar é imensamente mais fraca e duvidosa do que a que resulta das manifestações inteligentes, e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos através de um médium possante. (Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que, dispondo de um moderno canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)

Essa situação foi, como sempre, percebida e combatida por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente a importância crucial e a superioridade dos fenômenos mediúnicos de efeitos inteligentes, como também explicitamente referiu-se à inadequação dos métodos quantitativos, conforme se observa nas citações que fizemos na seção 3, em especial neste trecho de O que é o Espiritismo (destacamos):

[Os fenômenos espíritas] têm, como agentes, inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos [...]. A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe.

Também no Item de O Livro dos Espíritos que vimos analisando Kardec alerta (destacamos):

[As manifestações espíritas] escapam à competência da ciência material, visto não poder expressar-se por algarismos, nem pela força mecânica.

g. Recurso desnecessário e perigoso a aparelhos sofisticados. Não obstante de inegável valor nas investigações da matéria, como mostram os notáveis avanços da Física e da Química, a prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas ficou evidenciada pelas considerações expendidas no item anterior. Além disso, há mesmo riscos em sua utilização. Primeiro, tal utilização pode encobrir deficiências metodológicas profundas, produzindo uma ilusória impressão de rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de vista epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de aparelhos ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que aquelas que podem ser alcançadas de modo imediato. (Assim, uma das mais difundidas vertentes da Epistemologia chega mesmo a negar que entidades teóricas não diretamente observáveis possuam "referentes", ou seja, contrapartes reais.) A razão disso é simples: quando se utiliza um aparelho para fazer certa observação, o resultado da mesma pressuporá a validade das teorias envolvidas na construção e no funcionamento do aparelho, introduzindo-se, desse modo, mais elementos de incerteza.

Essas considerações epistemológicas explicam, por sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais do Espiritismo, quando comparado aos das teorias científicas, pois repousam em fenômenos extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de papel diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados etc. Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por exemplo, aquelas sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o mecanismo das mutações genéticas etc.

h. Referência a conceitos e teorias científicas obsoletos. A Física deste século introduziu, como já dissemos, alterações radicais em suas teorias, e conseguintemente em nossa visão do mundo. Conceitos que faziam parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo absolutos, partículas, campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos profundamente, por não mais servirem às novas teorias, não dando conta dos fenômenos observados. Assim, é inacreditável que haja pesquisadores das "ciências psi" tentando elaborar "teorias" e "modelos" para o Espírito baseados em noções de partículas e campos, e ainda mais, com a pretensão de estarem seguindo a Ciência! Vemos aqui uma vez mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao não vincularem os princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções. Assentaram-no, antes, em proposições básicas, "fenomenológicas", como dizem os filósofos, exatamente por serem estáveis.

i. Desprezo pelo passado: cada pesquisador em geral reinicia as investigações a partir do "nada", como se outros já não tivessem efetuado constatações dignas de confiança. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência se tivesse adotado semelhante atitude, não se teria saído de sua pré-história.

j. Ignorância da relevância dos fatores "morais" na produção de certos fenômenos. Kardec não tardou reconhecer, em seus estudos, a influências por vezes crucial de fatores ligados à harmonia de pensamento dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos objetivos a que se propõem, à sua condição moral etc. O assunto é abordado, entre outros lugares, no Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns, onde Kardec ressalta a "enorme influência do meio sobre a natureza das manifestações inteligentes" (parágrafo 233). Essa influência vem sendo também ilustrada e enfatizada na boa literatura mediúnica, que nos mostra em detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos na produção dos fenômenos. Assim, apenas para tomar um dos inúmeros exemplos, lembremos a descrição que André Luiz dá em Missionários da Luz (Cap. X) da profunda perturbação causada nos trabalhos de materialização a que presenciava pelo simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado, e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião. Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida (destacamos):

Nestes fenômenos, André, os fatores morais constituem elementos decisivo de organização. Não estamos diante de mecanismos de menor esforço e, sim, ante manifestações sagradas da vida, em que não se pode prescindir dos elementos superiores e da sintonia vibratória.

Também Emmanuel expende considerações desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro Emmanuel (destacamos):

Não são poucos os estudiosos que procuram investigar os domínios da ciência psíquica, na sede de encontrar o lado verdadeiro da vida; porém, se muitas vezes acham apenas o malogro das suas expectativas , o soçobro dos seus ideais, é que se entregam a estudos arriscados sem preparação prévia para resolver tão altas questões, errando voluntariamente com espírito de criticismo, muitas vezes injustificável, já que não é filho do raciocínio acurado, profundo. O êxito no estudo de problemas tão transcendentais demanda a utilização de fatores morais, raramente encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos e desejos que podem ser ardentes e sinceros.

5. O Espiritismo é religioso.

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião ? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião ? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, e evoca unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

Allan Kardec [nota 6]

Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm constituído ponto de freqüentes confusões.

Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as religiões ordinárias.

Se no estabelecimento da primeira dessas teses tivemos que identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.

Essa tarefa deve começar pela análise etimológica da palavra religião. Ela vem do Latim religione, derivado de religare, que naturalmente significa "religar", estando, neste caso, subentendido que "religação" é da criatura ao Criador.

Surge aqui a primeira diferença entre o Espiritismo e as religiões ordinárias.

Estas usualmente entendem por Deus um ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características notoriamente antropomórficas.

Já o Espiritismo define-o como "a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"(O Livro dos Espíritos, Questão n 1.), dando-lhe por atributos exclusivamente a eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência e a soberana justiça e bondade (ibidem, Questão 13), o que evidentemente exclui qualquer caráter antropomórfico.

A segunda diferença fundamental está na maneira pela qual o Espiritismo entende que a religação entre a criatura e Deus pode e deve ser promovida.

Segundo as religiões ordinárias, ela se dá através do ajuste da criatura a certas regras morais (éticas) e/ou da satisfação de providências formais e externas de vária ordem, dependendo da religião: batismo, crisma, comunhão, confissão; participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns; trazer em si as "marcas de Deus" etc.

Já o Espiritismo propõe que a religação da criatura ao Criador se faz exclusivamente pela adaptação de sua conduta a determinados preceitos morais, as medidas de ordem exterior sendo tidas não somente como supérfluas, como também de todo desaconselhadas e combatidas.

A terceira diferença reside em quais são as regras morais em questão.

O Espiritismo toma-as como unicamente aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do amor ao próximo.

Já as religiões ordinárias podem, dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas, ou incluí-las parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou alterar-lhes a interpretação original etc.

Por fim, crucial diferença surge no modo pelo qual essas regras éticas são justificadas.

As religiões ordinárias "justificam" as normas morais que propõem recorrendo à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição; são dogmas, portanto artigos de fé a serem aceitos sem exame.

Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente alcança das conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: "Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam."

Em artigo anterior ("Os fundamentos da ética espírita"; ver Referência Bibliográficas.) expusemos com certa extensão esse processo de fundamentação da moral espírita. Dada a relevância do tema, recorreremos aqui a algumas citações de Kardec, a fim de ilustrar o ponto e deixar clara sua posição.

Nos comentários às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que tratam do materialismo, Kardec refere-se à hipótese da aniquilação do ser com a morte corporal:

Triste conseqüência, se fora real, porque então o bem e o mal não teriam objetivo, o homem estaria justificado em só pensar em si e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres materiais; os laços sociais se romperiam, e as mais santas afeições se quebrariam irremediavelmente.

Passemos agora à Questão 222 do mesmo livro, onde encontramos:

Ora,pois: se credes num futuro qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico para todos, porquanto, de outro modo, qual a utilidade do bem ? Por que haveria o homem de constranger-se ? Por que deixaria de satisfazer a todas as suas paixões, a todos os seus desejos, ainda que à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria a condição futura ?

No Item IV da Conclusão dessa obra Kardec é ainda mais explícito (destacamos):

O progresso da Humanidade tem seu princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade. Tal lei se funda na certeza do futuro; tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas as condições da felicidade do homem.

No Item VIII Kardec reitera:

Razão, portanto, tivemos para dizer que o Espiritismo, com os fatos, matou o materialismo. Fosse este o único resultado por ele produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém, faz mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente, a necessidade do bem.

O Capítulo I de A Gênese está repleto de considerações sobre essa fundamentação experimental-racional da ética espírita. Recomendamos vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos 31, 32, 35, 37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva (destacamos):

Tirai ao homem o espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada, sem finalidade, nem responsabilidade [...].

No Parágrafo 42 encontramos:

Demais, se se considerar o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as ações da vida, por tornar tangíveis as conseqüências do bem e do mal [...].

No Parágrafo 56 Kardec volta ao assunto, desta vez analisando as relações entre a moral evangélica e a espírita, que, conforme observamos, coincidem quanto às normas morais (destacamos):

O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que forneceu da alma, de sue passado e de sue futuro, e que dão por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza. Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.

Encerrando essas notáveis citações de Kardec, que aliás poderiam estender-se ainda muito, adentrando, por exemplo, O Céu e o Inferno, obra inteiramente dedicada ao estudo teórico e experimental das conseqüências das ações humanas, voltamos ao comentário às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de ouro estas nossas reflexões:

[...] a missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos, por esse meio, a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo com os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

Notas 

1. Em nossas citações das obras de Allan Kardec utilizamos os originais franceses, aproveitando amplamente as traduções editadas pela Federação Espírita Brasileira; ver Referências Bibliográficas, no final deste artigo. 
2. "Espiritismo e Ciência. Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência"; ver Referências Bibliográficas. O leitor interessado em filosofia da ciência poderá consultar o livro de Alan Chalmers What is this thing called science, que é razoavelmente acessível e contém abundantes referências às fontes primárias.
3. Ver, por exemplo, seu famoso artigo "Falsification and the methodology of scientific reserch programmes", citado nas Referências Bibliográficas.
4. A inclusão da Psicologia e da Sociologia é problemática, já que não parecem, em sua atual fase de desenvolvimento, cumprir os requisitos mínimos de uma verdadeira ciência. Nós espíritas temos razões adicionais para essa dúvida, dado que tais disciplinas, pretendendo estudar o ser humano, ignoram precisamente o que lhe é mais essencial, ou seja, o Espírito.
5. Esse tema foi também lucidamente tratado em artigo recente de Juvanir Borges de Souza, "Pesquisas e Métodos", publicado no número de abril de 1986 de Reformador, cuja leitura recomendamos vivamente.
6. "Le Spiritisme est-il une religion ?", Revue Spirite, 1868, p. 357. Transcrito em L'Obsession, pp. 279-92 (ver Referências Bibliográficas). Uma tradução desse artigo, por Ismael Gomes Braga, apareceu em Reformador, de março de 1976. Os destaques na citação acima são nossos. 

Referências Bibliográficas

ANDRÉ LUIZ. Missionários da Luz. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 6a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e Métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.
CHALMERS, A. F. What is this thing called science? St. Lucia, University of Queensland Press, 1976.
CHIBENI, S. S. "Espiritismo e Ciência". Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência". Reformador, maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.
-----. "Os fundamentos da ética espírita". Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
EMMANUEL. Emmanuel. Dissertações mediúnicas sobre importantes questões que preocupam a Humanidade. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 5a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
-----. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
-----. Le Livre des Médiums. Paris, Dervy-Livres, 1972. (O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro, 46a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
-----. La Genèse, les Miracle et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)
-----. L'Obssession. Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l'Union Spirite, 1950.
LAKATOS, I. "Falsification and the methodology of scientific reserch programmes". In: LAKATOS, I. & Musgrave, A. eds. Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. pp. 91-195.

(Publicado em Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33 e dezembro de 1988, pp. 373-78. Digitado por Ademir L. Xavier Jr.)


Leitura  Recomendada;

AS PROVAS CIENTÍFICAS
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ALGUMAS ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
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