“A diversidade de imagens de Jesus levanta a
suspeita de que os retratos de Jesus sejam na verdade auto-retratos de seus
autores.”1
HAROLDO DUTRA DIAS
O reinado de Guilherme II (1859-1941)
assistiu, na Alemanha, ao florescimento do liberalismo teológico e da pesquisa
“clássica” sobre a história do Cristianismo, cuja característica marcante foi a
exploração histórico-crítica das fontes literárias, visando a reconstrução da
personalidade e da vida de Jesus, ao menos na concepção dos seus expositores
mais destacados.
Inaugurava-se a Terceira Fase da pesquisa
histórica do Cristianismo sob a influência de desmedido otimismo. F. Baur
defendia a primazia dos sinóticos sobre o Evangelho de João. H. Holzmann
propunha a teoria das duas fontes,
segundo a qual Marcos e “Q”2 representavam as
mais antigas e confiáveis fontes para a reconstrução do quadro biográfico do Cristo.
O colapso do liberalismo teológico, porém,
veio mais cedo do que se imaginava, em virtude de três fatores: a constatação
do caráter fragmentário dos evangelhos, que impediria qualquer esforço de
extrair um “desenvolvimento” da personalidade de Jesus a partir da seqüência
narrativa do evangelho de Marcos; o caráter tendencioso das fontes antigas,
visto que o evangelista privilegiava determinada mensagem, ainda que em
detrimento de uma suposta “precisão histórica”; o elemento projetivo das biografias
sobre Jesus, uma vez que os biógrafos retratavam a personalidade do Mestre ao
sabor das suas preferências e conveniências pessoais.
O ocaso da Teologia Liberal contribuiu para o
surgimento da chamada “Teologia Dialética”, herdeira da filosofia
existencialista de Heidegger, segundo a qual “o ser humano conquista sua
‘autenticidade’ apenas na decisão, a qual não pode ser assegurada mediante
argumentos objetiváveis (como o conhecimento histórico).
Para um existencialismo cristão a decisão é a
resposta ao chamado de Deus no querigma3 da cruz e da ressurreição de Cristo,
que o ser humano compreende por meio de
um morrer e viver existencial em Cristo”.4
O trabalho de R. Bultmann (1884-1976), o mais
destacado exegeta da Teologia Dialética, reflete o ceticismo histórico que
tomou conta dos pesquisadores, após o colapso da pesquisa tradicional. Na sua
concepção, o Cristianismo começa apenas com a Páscoa, razão pela qual conclui
que o ensino de Jesus não é relevante para uma Teologia Cristã. Nessa abordagem,
o Jesus histórico não é objeto nem fundamento da pregação neotestamentária, que
se baseia exclusivamente no “Cristo” percebido e divulgado após o Pentecostes (Cristo
Querigmático).5
A Quarta Fase da pesquisa, desenvolvida no
círculo dos discípulos de Bultmann, propõe uma “nova pergunta” pelo Jesus
histórico, buscando o elo entre a pregação
pós-pascal dos apóstolos e a pregação do
próprio Jesus. Enquanto a “antiga pergunta” (Teologia Liberal) contrapunha
Jesus à pregação da Igreja, a “nova pergunta” procura harmonizar esses dois
elementos.
No lugar da reconstrução crítico-literária
das fontes, a metodologia da Teologia Dialética se concentra na comparação
entre a história das religiões e a história da tradição evangélica.Nesse
contexto, assume papel relevante o intitulado “critério da diferença”, segundo
o qual, para se reconstruir um mínimo de tradição autêntica sobre Jesus,
torna-se necessário excluir tudo que possa ser derivado tanto do Judaísmo quanto
da pregação apostólica, nabusca da voz “original” do Cristo.
Na opinião dos estudiosos do tema:
[...] com
o fim da escola bultmaniana ficaram cada vez mais evidentes as arbitrariedades
da “nova pergunta” pelo Jesus histórico. Ela era basicamente determinada pelo
interesse teológico de fundamentar a identidade cristã ao distingui-la do judaísmo e de garanti-la ao separá-la de
heresias cristãs primitivas (como a gnose e o entusiasmo carismático).Por isso
ela deu preferência a fontes ortodoxas e canônicas.6
Assim, o esforço para minimizar os contornos
judaicos da mensagem cristã constitui o aspecto problemático dessa abordagem,
já que favoreceu o anti-semitismo, desfigurando o pano de fundo histórico dos
evangelhos para torná-lo mais palatável aos existencialistas.
A Quinta Fase da pesquisa, também conhecida
como terceira busca (Third Quest), que se desenvolveu, sobretudo, nos países de
fala inglesa, procura superar essas
idiossincrasias. Nela, o interesse histórico-social
substitui o interesse teológico, ao passo que a inserção de Jesus no Judaísmo
substituiu o interesse de separá-lo das
suas bases históricas e sociais. Há, também,
maior abertura a fontes não-canônicas (em parte heréticas), tais como os
apócrifos.
Em suma, munidos dos novos instrumentos da
pesquisa hodierna, tais como história antiga, crítica literária, crítica
textual, filologia, papirologia, arqueologia, geografia, religião comparada, os
atuais pesquisadores tentam reconstruir o ambiente sociocultural de Jesus, de
modo a experimentar o efeito que as palavras do Mestre produziram nos ouvintes
da sua época.
Nesse esforço, procura-se evitar juízos
preconcebidos, premissas rígidas, preconceitos étnicos, deixando que a mensagem
se estabeleça ainda que contrariamente às expectativas dos crentes atuais.
No entanto, ao montar o quebra-cabeça da
história do Cristianismo Primitivo com as escassas peças disponíveis, nem
sempre é possível ao pesquisador humano dispensar certa dose de imaginação.
Na avaliação de Gerd Theisen:
[...] todas
as descrições de Jesus contêm um elemento construtivo que vai além dos dados
contidos nas fontes. A imaginação histórica cria com suas hipóteses uma “aura
de ficcionalidade” em torno da figura de Jesus, assim como a imaginação
religiosa do Cristianismo primitivo. Pois tanto aqui como lá atua uma grande força
imaginativa, acesa pela mesma figura histórica. Em ambos os casos, ela opera de
forma aberta: símbolos religiosos, imagens e mitos permitem sempre nova
interpretação, hipóteses históricas permitem sempre nova correção.Neste
processo, nem a construção religiosa, nem a reconstrução histórica da história de
Jesus procede com arbitrariedade, mas com base em convicções axiomáticas. A
imaginação religiosa do cristianismo primitivo é conduzida pela sólida crença
de que por meio de Jesus é possível fazer contato com Deus, a realidade última.
A imaginação histórica é determinada pelas convicções básicas da consciência histórica:
todas as fontes se originam de seres humanos falíveis e devem, portanto, ser submetidas
à crítica histórica.7
O espírita-cristão, abençoado pela revelação
dos Espíritos superiores, especialmente na produção mediúnica de Francisco
Cândido Xavier, conta com um elemento precioso, muitas vezes negligenciado. Os
romances do Benfeitor Emmanuel constituem detalhado processo de reconstrução
dos três primeiros séculos do Cristianismo.
Nesses romances, alguns dados da pesquisa
histórica puramente humana são confirmados, todavia, muitas retificações são
feitas, de forma sutil. Exige-se do leitor exame cuidadoso, sob pena de serem divulgadas
informações espiritualmente incorretas, apenas porque determinado pesquisador
encarnado as defenda em suas obras.
Nesse sentido, é valiosa a advertência de
Emmanuel:
[...] Hipóteses
incontáveis foram aventadas, mas os sábios materialistas, no estudo das idéias
religiosas, não puderam sentir que a intuição está acima da razão e, ainda uma
vez, falharam, em sua maioria, na exposição dos princípios e na apresentação
das grandes figuras do Cristianismo.
[...] É
que, portas a dentro do coração, só a essência deve prevalecer para as almas e,
em se tratando das conquistas sublimadas da fé, a intuição tem de marchar à
frente da razão, preludiando generosos e definitivos conhecimentos.8
Vê-se que a proposta da Espiritualidade superior
reside na conjugação da Razão e da Fé, razão pela qual, antes de iniciarmos
nosso estudo da “História Apostólica”, à
luz da obra Paulo e Estêvão, decidimos fazer
um histórico da pesquisa acadêmica, a fim de evitar, ou pelo menos conhecer, as
extravagâncias e equívocos de seus expositores.
Referência:
1THEISEN, Gerd; MERZ, Annette. O
Jesus histórico. São Paulo: Loyola, 2002. p. 31.
2Termo
alemão que significa “fonte”. Schleiermacher foi o primeiro a propor a existência
de uma coletânea de declarações de Jesus como uma das fontes dos evangelhos. Alguns
críticos acreditam que Papias faz referência a esse documento quando
3No
grego, essa palavra (querigma) significa “a coisa pregada”, a pregação dos primeiros
cristãos, ou melhor, o conjunto de crenças básicas por eles defendidas e
divulgadas. menciona a existência das “Logias” de Levi.
Todavia, cumpre salientar que não há comprovação histórica da existência do
referido documento. O trabalho dos estudiosos tem sido selecionar ditos de Jesus,
nos evangelhos de Mateus e Lucas, ausentes no evangelho de Marcos, propondo que
essa seleção aponte para a suposta fonte “Q”. Em resumo, estamos diante de uma
hipótese que deve ser analisada com cautela.
4THEISEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 31.
5O
Cristo retratado na pregação dos apóstolos e dos primeiros cristãos do Século
I.
6THEISEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 28.
7THEISEN, Gerd; MERZ,Annette. O Jesus histórico.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 31.
8XAVIER,
Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 36. ed.
Rio de
Janeiro: FEB, 2007. Cap. XIV, item “A redação dos textos definitivos”, p.
124-125.
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