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sábado, 14 de fevereiro de 2015

A CIÊNCIA CONFIRMA O ESPIRITISMO?


Aécio Pereira Chagas

Temos observado na literatura espírita (livros, revistas, jornais) que constantemente surgem afirmações do tipo "a Ciência moderna confirma o Espiritismo", seguida de citações, a nosso ver, muito duvidosas a respeito de questões científicas. Muitas vezes percebemos no autor uma seriedade de propósitos, porém suas citações nem sempre se apóiam bem no que poderíamos chamar de um "conhecimento científico estabelecido". São citadas obras de divulgação científica que nem sempre primam pelo rigor e, o que é pior, são às vezes escritas com uma "segunda intenção". Perguntará então o leitor: "O que há de errado nos textos de divulgação científica? Será que a Ciência moderna não confirma o Espiritismo?" Neste artigo vamos tecer inicialmente algumas considerações sobre materialismo, espiritualismo, a Ciência e sua divulgação, sobre outros temas decorrentes e, finalmente, tentaremos responder a estas duas questões.

1. Materialismo e espiritualismo

Muitos compêndios de Filosofia ensinam que as escolas filosóficas, as visões de mundo, as ideologias, etc., podem se alinhar em dois grandes grupos: o grupo materialista, para os quais tudo é matéria, senso o pensamento uma qualidade da matéria, e o grupo espiritualista ou idealista, para os quais o espírito existe como uma realidade independente da matéria (vide, por exemplo, Dicionário de Filosofia, Durozoi e Roussel, Papirus, 1993). "(…) Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista (…)" (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, Introdução, 75a edição, FEB, pág. 13). As filosofias, as ideologias, dentro de cada um dos dois grupos, estão longe de concordarem entre si em muitos outros pontos, a não ser neste único aspecto de aceitar ou não a existência do espírito. O Espiritismo evidentemente está no segundo grupo e, como já bem apontou Deolindo Amorim (O Espiritismo e as doutrinas espiritualistas, 3a ed., Livraria Ghignone Editora, 1979), o fato de uma doutrina ser espiritualista não significa que está de acordo com o Espiritualismo, a não ser na crença do espírito como algo diferente da matéria.

Conforme já tivemos oportunidade de expressar no artigo "O Espiritismo na Academia?" (Revista Internacional de Espiritismo, fevereiro 1994, pp. 20-22, e março 1994, pp. 41-43), dentro do contexto cultural ocidental, no qual estamos inseridos, desde o início do século passado, após a Revolução Francesa, tem havido uma luta ideológica que pode ser rotulada de materialismo x espiritualismo. Não vamos discutir sobre a origem desta luta e como ela está inserida na sociedade, suas conseqüências, etc., o que não caberia aqui.[Nota 1] Mas esta luta tem-se travado nos vários segmentos da sociedade e da cultura; a ponto de não mais se perceber que ela existe, salvo no aspecto religioso, que costuma ser mais gritante. Do lado materialista a ideologia predominante é a que podemos chamar de positivista ou mecanicista, não necessariamente ligada à filosofia positivista, formulada por Auguste Comte, a partir de 1830, mas com muita coisa em comum. A ideologia (ou mentalidade) positivista essencialmente é de índole materialista, anticlerical, pretensamente racionalista, valorizando o "conhecimento objetivo", ou seja, o conhecimento apreendido pelos sentidos. Já do lado espiritualista, o principal representante tem sido a Igreja Católica Romana, seguida das diversas igrejas reformadas. No final do século passado houve uma "grande batalha" entre essas facções, que se traduziu num debate ideológico e em coisas mais "práticas", como disputas por cátedras, pelo controle de instituições culturais e acadêmicas, etc., visando ao controle do "saber oficial". Com a entrada de uma outra facção do lado materialista, o marxismo, depois da Revolução Russa de 1917, a balança pendeu para este lado, porém a guerra ainda não acabou, e estamos nela. Os leitores espíritas poderão ler, com a atenção voltada nesta direção, o extraordinário livro de Camille Flammarion, Deus na Natureza (Rio, Federação Espírita Brasileira), escrito no século passado, onde perceberão o debate deste com os positivistas. A Filosofia, as Ciências, as Artes, e a própria Religião, têm sido usadas como armas nesta luta. No caso das Ciências, têm sido utilizadas teorias científicas para justificar determinadas posições ideológicas. Por exemplo, a teoria de Darwin e Wallace, ou seja, a "Teoria da Seleção Natural", formulada para explicar a evolução biológica das espécies animais e vegetais, foi utilizada para explicar o desenvolvimento das sociedades humanas, sob o nome de "Darwinismo Social", justificando as desigualdades sociais, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, dos fins do século passado.

2. A palavra ‘ciência’ e seus significados

Passemos agora a um outro tópico: os significados da palavra "Ciência". Vários são os sentidos que esta palavra pode ter, obviamente relacionados entre si. "Ciência" significa conhecimento, sendo usada com significado geral ("o fruto da árvore da ciência do bem e do mal") ou restrito ("a ciência de fazer papagaios de papel"). Significa um determinado tipo de conhecimento já consagrado como tal, como a Física, a Química, a Biologia, etc. Significa a atividade através da qual se obtém este conhecimento ("fazer ciência" = realizar uma determinada atividade científica). Significa também o conjunto de pessoas empenhadas na atividade científica: "a comunidade científica". Quando se diz que a "ciência aceita a tese de que há outros mundos também habitados", está se querendo dizer que a comunidade dos cientistas (ou parte dela) aceita esta tese, pois obviamente não há ainda um estudo científico, no sentido convencional do termo, sobre outros mundos habitados.

Nem sempre porém a comunidade científica é homogênea e coesa. os cientistas são pessoas que em suas atividades profissionais buscam objetividade, precisão, rigor lógico, etc., porém for a dessas atividades são pessoas comuns, com todas idiossincrasias, prenoções e preconceitos do vulgo. Kardec já comenta isto na Introdução de O Livro dos Espíritos e em O que é o Espiritismo. Bertrand Russell, conhecido filósofo deste século, menciona em um de seus textos (A perspetiva Científica, trad. J. B. Ramos, Cia. Ed. Nacional. 1956):

Se algum de vossos amigos for um cientista, acostumado a maior precisão quantitativa em suas experiências, e que possua a mais recôndita capacidade de inferir, podereis sujeitá-lo a pequena experiência sem dúvida significativa. Caso escolherdes em palestra como assunto política, teologia, impostos sobre a renda, corretagem, a vaidade das classes trabalhadoras e outros tópicos de natureza semelhante, provocareis sem dúvida uma explosão e ireis escutá-lo expressar opiniões que não forram verificadas, com um dogmatismo que nunca poderia expressar com relação a resultados que fossem fundados em suas pesquisas de laboratório.

3. A divulgação do conhecimento científico

O conhecimento científico, ou seja, o conhecimento resultante da atividade científica, é divulgado de várias maneiras, ou, como chamaremos, níveis.[Nota 2] Vamos considerar apenas a divulgação que gera publicações (revistas, livros, etc.) ou eventualmente filmes, vídeos, etc. Então podemos ter os seguintes níveis:

1o nível – É a divulgação que um ou vários pesquisadores fazem de seu trabalho, de suas idéias, entre os outros pesquisadores da mesma área. É feita normalmente no jargão próprio e seu entendimento requer um treino adequado naquela área de conhecimento. São utilizadas revistas especializadas, livros, etc., que têm uma característica toda própria: o autor e o leitor são pessoas da mesma profissão e, grosso modo, do mesmo nível de conhecimento, ou seja, ambos são membros da mesma comunidade na qual a publicação circula.

2o nível – O conhecimento é divulgada principalmente entre os estudantes de uma dada disciplina. O conhecimento é preparado de forma a iniciar os estudantes naquele campo do conhecimento. São geralmente escritos por pessoas com treino naquele campo (cientistas, professores), e utilizam o jargão próprio, porém de uma forma "amenizada". São os materiais didáticos na forma de livros, revistas, filmes, etc. Evidentemente o autor e o leitor são pessoas de profissão e nível de formação diferentes, pois o estudante está se iniciando naquela comunidade, porém ainda não é um membro.

3o nível – Divulgação para os "leigos". O conhecimento é também preparado para ser transmitido aos não especialistas, porém sem a preocupação de formar o futuro especialista, senso às vezes, feito até em forma de lazer. Podem ser escritos por cientistas, professores ou divulgadores. Estes últimos nem sempre têm um treino naquela área de conhecimento; são profissionais da escrita (escritores, jornalistas, e outros) que estão mais preocupados na "digestibilidade" do conhecimento pelo "leigo".

No 2o e 3o níveis têm papéis importantes na preparação do conhecimento. Estes mesmos pontos de vista que externamos poderá o leitor também os encontrar na interessante matéria veiculada na revista Veja, de 21 de dezembro de 1994, pág. 138, da autoria de Neuza Sanches, referente aos textos de História do Brasil para estudantes secundários. Muitas vezes, nesta preparação do conhecimento, verdades são transformadas em meias-verdades, involuntária ou voluntariamente … e é neste buraco que muitas vezes caímos.[Nota 3]

4. Matéria e energia

Para ilustrar o que dissemos no item anterior, vejamos um caso freqüentemente mencionado em textos espíritas, e em muitos outros, que "a matéria é energia condensada … de acordo … com Einstein, através de sua equação E=mc2 …".

Nesta afirmação equivocada nunca é encontrada em textos de Física ou Química sérios, seja do 1o, 2o ou 3o níveis. Mas em muitos do 3o nível (e até do 2o), que são, muitas vezes, utilizados como fonte de referência. Por que estas afirmações, no nosso entender, são equivocadas?

Não vamos aqui, for falta de espaço, discorrer sobre o que vem a ser energia, no sentido empregado pela Física.[Nota 4] O ponto importante que queremos frisar é que energia e massa são propriedades da matéria. A célebre equação de Einstein, E=mc2, diz que a energia total de um sistema é calculada através do produto da massa pelo quadrado da velocidade da luz, ou seja, como a maioria das equações físicas, relaciona duas propriedades da matéria: a massa e a energia. Esta equação, e outras no âmbito da teoria da relatividade, vai unificar os princípios de conservação de massa e de energia, que passam agora a ser um só: "princípio de conservação da massa e energia".

Por que então surgiu esta afirmação "a matéria é energia condensada"?

Como falamos acima, no item 1, os grupos empenhados na luta ideológica que mencionamos procuram buscar apoio na Ciência. E no caso interpretou-se um resultado científico à luz de uma determinada ideologia, no caso espiritualista, interessada em negar, se possível, a existência da matéria, ou pelo menos em diminuir sua importância dentro da visão de mundo dessa ideologia. À medida que isto é feito (negar a matéria), este conjunto de idéias se torna "mais verdadeiro". Esta interpretação interessou (e interessa) a muitos grupos espiritualistas, que desta forma tentam mostrar a primazia do espírito sobre a matéria, sem usar de outros fenômenos ou argumentos como a mediunidade e a reencarnação. A Doutrina Espírita não necessita deste tipo de "argumento" para afirmar a existência do espírito e sua primazia sobre a matéria, pelo fato de o espírito ser o princípio inteligente. Isto é um ponto básico da Doutrina e suas conseqüências são verificadas na prática. Não é pelo fato de o Espiritismo ser espiritualista que necessita negar a existência da matéria. Recordemos a Questão 27 de O Livro dos Espíritos (43a edição, FEB):

P : "Há então dois elementos gerais do Universo: a matéria e o Espírito?"

R : "Sim e acima de tudo Deus, o criados, o pai de todas as coisas. Deus, espírito e matéria, constituem o princípio de tudo o que existe (…)."

Emmanuel, este Espírito que nos tem dado tantos ensinamentos e orientações, disse alhures que "matéria é luz congelada". Estaria Emmanuel, segundo o que dissemos acima, errado? Não. Em primeiro lugar a frase tem um certo sentido metafórico, porém, mesmo considerando-a ao pé da letra, ela não está errada, pois a luz é matéria. A luz, como outras formas de radiações, é um determinado tipo de matéria, e como tal apresenta diversas propriedades desta, como a massa e a energia. Muitas vezes se utilizam, no meio espírita, expressões como: "o passe é uma transferência de energia". Tal expressão não é incorreta, pois a energia está associada aos fluidos transferidos, o que fica subtendido.[Nota 5] Esta, como grande parte das expressões coloquiais que utilizamos, carece de precisão, porém se fôssemos ser sempre precisos em nossa linguagem usual, acabaríamos doidos ou mudos.

5. A Ciência é materialista?

Retomemos os significados da palavra Ciência, que vimos acima. Costuma-se mencionar que "a Ciência é materialista". Mas qual "Ciência"? Dos significados vistos podemos considerar dois: um primeiro, significando conhecimentos específicos (Física, Química, etc.), e um segundo significando a comunidade científica.

O primeiro significado nos faz pensar também nos significados do termo "materialista". As Ciências da matéria (Física, Química, Biologia, etc.) são "materialistas" porque evidentemente estudam a matéria e somente a matéria, pois foram feitas para isso. Querer que elas sirvam para outra finalidade, ou seja, estudar aspectos não materiais da Natureza, é propor, a nosso ver, uma temerosa aventura. Essas tentativas, algumas registradas na história, outras não, sempre redundaram em fracasso. Por outro lado o termo materialista, no sentido filosófico (como visto no item 1), não faz muito sentido ao ser aplicado às ciências da matéria.

Tomando agora o segundo significado do termo ciência – a comunidade dos cientistas – a pergunta - título deste item: "A Ciência é materialista?", é bem apropriada. Como também já mencionamos, o cientista é cientista apenas enquanto exerce sua profissão; for a dela é um cidadão comum, com todas as idiossincrasias comuns. De fato, a maioria da comunidade científica, em âmbito mundial, é materialista no sentido filosófico do termo, assim como também o é a maioria dos membros das sociedades aos quais pertencem os grandes contingentes científicos da atualidade (e isto gostaríamos de frisar). E aqui vale lembrar a advertência de Emmanuel, ou seja, da necessidade de os cientistas se evangelizarem.

Em resumo, a Ciência, pelo fato de estudar a matéria não deve ser por isso considerada materialista, porém a comunidade científica é, em sua maioria, materialista.[Nota 6]

6. A Ciência confirma o Espiritismo?

Voltemos então às perguntas iniciais: "O que há de errado nos textos de divulgação científica? Será que a ciência moderna não confirma o Espiritismo?" Cremos que o que foi dito acima já responde, em parte, a estas perguntas, principalmente à primeira.

Os textos de divulgação científica, independentemente da qualidade individual de cada um, o que não vem agora ao caso, costumam trazer em seu bojo alguma coisa a mais que os resultados das investigações científicas. Tudo bem, cada um tem o sagrado direito de se expressar. No entanto cada um tem também o sagrado direito de aceitar ou não. Este sagrado direito nem sempre é exercido e aceitam-se certas afirmações cegamente. Kardec nos ensinou o que fazer com as mensagens mediúnicas; vamos aplicar estes critérios também nas mensagens dos encarnados. Em resumo, acho que com os textos de divulgação científica não há nada de errado; alguém está "vendendo seu peixe" e outros simplesmente estão "comprando", sem verificar se o mesmo "está bom ou não".

E a Ciência confirma o Espiritismo?

O outro aspecto a considerar é que o Espiritismo é também uma Ciência. O sucesso das ciências em geral significa também o sucesso da ciência espírita. O raciocínio pode parecer simplista, em parte devido à maneira rápida com que estamos tratando, porém as dificuldades de se entender o que vem a Ciência. Com relação a esta questão o leitor poderá compulsar o artigo "O paradigma espírita", do nosso confrade Silvio Seno Chibeni (Reformador, junho 1994, pp. 176-80), bem como as referências aí citadas que, cremos, esclarecerão melhor a questão. A nosso ver, este é um dos caminhos de confirmação do Espiritismo pela Ciência. O Espiritismo é uma ciência que trata de uma ordem diferente de fenômenos que aqueles de que tratam as ciências da matéria, como já afirmou Kardec. A comparação dos resultados destas ciências não faz portanto muito sentido, principalmente tendo em vista que os "últimos resultados científicos", das ciências da matéria, estão entre as coisas mais mutáveis que existem.

Uma outra linha de comparação que se pode fazer entre Ciência (ainda entendida com conhecimento específico) e Espiritismo seira através do desenvolvimento dos estudos psicológicos ou dos estudos do ser humano em geral. A Psicologia atual está longe de ser considerada uma ciência madura (ou mesmo Ciência, no pensar de alguns), no entanto muitos estudiosos, quase sempre for a do contexto do que poderíamos chamar de "Psicologia Oficial", têm dado contribuições interessante. Os trabalhos de Ian Stevenson (Vinte casos sugestivos de reencarnação, Difusora Cultural, São Paulo, 1978 e Vida antes da vida, Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1988) e outros, trouxeram resultados notáveis. O leitor interessado nesta área poderá consultar o livro Alquimia da Mente, do conhecido escritor espírita Hermínio C. de Miranda (Publicações Lachâtre, Niterói, RJ, 1994), onde muitos outros estudiosos não-espíritas têm apresentado contribuições interessantes. Essa área de estudo, ou seja, o estudo da mente, é uma área comum ao Espiritismo. É possível que num futuro não muito longínquo, os estudos nesta direção chegarão aos mesmos resultados já afirmados pelo Espiritismo, porém, de todo o vasto leque de tentativas de se estudar a mente humana sem considerar a existência do Espírito, a maior parte tem esbarrado em resultados ou em dificuldades onde se faz necessário considerar esta hipótese, sem a qual se entra num beco sem saída. Talvez pudéssemos atrevidamente "profetizar" que quando a psicologia adotasse o paradigma espírita, estaríamos realmente no "início dos novos tempos".

Há ainda um outro ponto a observar, ligado às ciências da matéria. Muitos estudiosos têm-se envolvido numa determinada linha de pesquisa, que remonta à época das mesas girantes, e que tem por objetivo provar a existência do Espírito através de métodos físicos. Apesar de não estar só, em minha obscura opinião, esta linha não chegou e nem chegará a nada, pois os métodos físicos são adequados para se estudas a matéria (foram feitos para isto). Caso alguém evidencie a presença do Espírito através de um método físico, cabe sempre um questionamento metodológico, e daí não se chega a parte alguma. Por outro lado, muitos confrades poderiam ainda argumentar com o fato de Kardec, em suas obras, mencionar várias vezes que o Espiritismo e a Ciência marchariam lado a lado. Estas afirmações poderiam causar (e causam) em muitos leitores a impressão de que Kardec falava das ciências da matéria. Creio que Kardec tinha em mente a Ciência Espírita, que ele acreditavam com toda a certeza, que ainda estava no começo e que iria crescer, porém é melhor passar a palavra ao próprio Mestre Lionês (O que é o Espiritismo, Cap. I, Segundo Diálogo – O Céptico, Oposição da Ciência, págs. 77 e 78, 36a ed., FEB):

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então ficam fora dos domínios da ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como experimenta uma pilha voltaica; foi malsucedida como devia sê-lo, porque agiu visando uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se encarregou de ir emendando diariamente, como já tem emendado outros; e, àqueles que o preferiram, restará a vergonha do erro de se haverem levianamente pronunciado contra o poder infinito do Criador.

As corporações sábias não podem nem jamais poderão pronunciar-se nesta questão; ela está tão for a dos limites de seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é pois, um erro fazê-las juiz dela.

Cremos também ter respondido, ainda que de maneira incompleta, à pergunta título desde artigo. O que nos moveu a percorrer este caminho foi justamente a preocupação com as afirmações que colocamos no início. Se não fosse isto, seguiríamos o caminho adotado pelo confrade Luiz Signates, expresso no excelente artigo "Ciência versus Religião: o debate vazio" (Reformador, abril de 1994, pág., 118), com o qual concordamos plenamente e que, de um certo modo, converge aos pontos de vista que externamos também no artigo já mencionado "O Espiritismo na Academia?"

As críticas que aqui fizemos são genéricas e não são de modo nenhum, pessoais. Gostaríamos que outros pontos de vista fossem também colocados.

Notas

1. É bem conhecido o caso de um candidato a um importante cargo público em nosso país que foi derrotado "na boca da urna" por se dizer ser ateu. Em muitos países, inclusive o nosso, muitos candidatos fazem suas campanhas políticas de Bíblia na mão. 

2. Não vamos considerar a comunicação oral, que também satisfaz aos critérios que vamos apresentar, mas seu lado informal confunde-se com o lado formal, do qual estamos tratando.

3. Ouvi certa vez a expressão "duas meias-verdades não fazem uma verdade inteira"

4. A palavra energia tem também outros significados, o que pode provocar confusões. Vide Xavier Jr. A. L., "Algumas considerações oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência", Reformador de agosto de 1995, pp. 244-46

5. Estaria Emmanuel utilizando um sentido diferente para a palavra energia? Se ele usou, já não temos o que comentar, pois o sentido da frase é agora praticamente literal. Vide a nota 4. 

6. Não vamos estender mais sobre esta questão do materialismo na Ciência. O leitor interessado poderá consultar o livro A Ciência em Ação, de Claude Chrétien, trad. M. L. Pereira, Papirus Editora, 1994.


Artigo publicado em Reformador, julho de 1995, pp. 208-11. Digitado por Rodrigo Almeida Gonçalves.


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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A “CIÊNCIA OFICIAL”


Questões acerca da natureza do Espiritismo - IV

Silvio Seno Chibeni

Neste artigo são tecidas algumas considerações acerca da ciência oficial ou acadêmica, que serão úteis para o esclarecimento de certas questões sobre a ciência espírita, nos artigos subseqüentes desta série.[1]

Questão:

Costuma-se dizer que a “ciência” aprova ou rejeita determinado ponto. O que devemos entender por isso? Existe realmente uma “posição oficial” da ciência? Nesse caso quais seriam os órgãos ou pessoas que poderiam ter tal prerrogativa, de determinar a posição oficial da ciência? Parece-nos que na época de Kardec essa frase normalmente se referia às grandes academias e aos órgãos oficiais dos estados europeus. Há hoje algo equivalente?

Resposta:

A autoridade de que a ciência desfruta hoje em dia entre o público em geral pode ser aquilatada pelo fato de ser freqüentemente explorada para induzir à aceitação de determinadas teses, processos, sistemas políticos, produtos de consumo, etc. Há um efeito quase que intimidador associado à rotulação de algo como ‘científico’. Bens de consumo variados, desde cremes dentais até sofisticados aparelhos eletrodomésticos são ditos terem sido elaborados por processos científicos, ou submetidos a testes científicos. Geralmente despreparadas para avaliar por si próprias se, em cada caso, a qualificação é ou não pertinente, as pessoas tornam-se vítimas de manipulações diversas.

Mesmo no plano das idéias e teorias – e isso é o que mais de perto nos interessa aqui –, a demanda por cientificidade é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história do pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos, procuram de alguma forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas e bem sucedidas, como a física, a química e a biologia, inquestionavelmente consideradas científicas. Em nome desse processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento das disciplinas nascentes ou em vias de consolidação. Embora a proposta de aprender-se algo acerca da natureza da ciência, ou do chamado “método científico”, pela inspeção das disciplinas paradigmaticamente científicas seja adequada e mesmo indispensável, a falta de preparo filosófico tem amiúde levado ao seu fracasso parcial ou total.

Bastante diverso foi o resultado alcançado por Allan Kardec no desenvolvimento do Espiritismo. Possuidor de sólida formação filosófica e científica, ele soube imprimir às investigações dos novos fenômenos um cunho genuinamente científico, conforme procurei destacar nos artigos da lista de referências bibliográficas. A ciência espírita, cujos fundamentos ele lançou, têm por objeto de estudo o elemento espiritual do ser humano. Esse elemento manifesta-se em múltiplos fenômenos psicossomáticos, anímicos e mediúnicos, sendo estes últimos os que desencadearam as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis básicas da teoria.

Nos referidos trabalhos, argumento, ademais, que o Espiritismo constitui a única abordagem científica disponível para essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas após ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções de concepção, por falta, entre outras coisas importantes, de uma adequada percepção das diferenças de objetos de estudo relativamente às ciências exatas. Em sua lucidez, Kardec reconheceu-as prontamente, apontando-as em diversas de suas obras, como por exemplo no item 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos e ao longo das primeiras partes de O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades dos fenômenos de que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência lógica, simplicidade, poder explicativo, abrangência, coerência e integração harmônica com ciências limítrofes, atributos igualmente necessários para qualquer disciplina que queira fazer jus ao título de ‘científica’.

Feitas essas observações preliminares (que serão parcialmente desenvolvidas nos artigos restantes desta série), posso adentrar agora mais diretamente o tópico específico da pergunta formulada. Felizmente, posso poupar-me à maior parte da tarefa, recomendando ao leitor a consulta dos artigos de Aécio P. Chagas, “O que é a Ciência?” e “A Ciência confirma o Espiritismo?”, incluídos na lista de referências bibliográficas. Nesses trabalhos a questão da ciência oficial, relativamente aos interesses espíritas, foi tratada de modo seguro e esclarecedor. Não me cabe aqui reproduzir seu conteúdo. Limitar-me-ei a relembrar alguns dos tópicos principais da análise do Prof. Chagas, estendendo um pouco a discussão para responder de forma explícita a pergunta que foi feita.

Uma distinção importante destacada nos trabalhos mencionados é aquela entre “ciência-conhecimento”, “ciência-atividade” e “ciência-comunidade”. Quando se afirma que a ciência aprova isso ou aquilo, a frase é passível de dupla interpretação: Ou significa que a coisa faz parte (ou pode ser deduzida) do corpo teórico paradigmático de uma das ciências maduras (física, química e biologia); ou, em sentido secundário, que a comunidade científica tem uma opinião mais ou menos geral a seu respeito, embora ela ainda não faça parte de nenhuma teoria bem estabelecida.

A idéia de uma “posição oficial” da ciência só é razoável se entendida com referência às teorias que, à época, integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos especializados.

Os profissionais acadêmicos não ignoram que os jornais e revistas especializados canalizam hoje o grosso da produção científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em inglês se chama de “double-blind refereeing”: os trabalhos submetidos para publicação são enviados anonimamente a vários membros conceituados da própria comunidade científica, que os examinam criticamente e anonimamente. Teses discrepantes dos paradigmas que não sejam maciçamente apoiadas por evidências experimentais e argumentos racionais são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer que conflitam com a “posição oficial”, mas apenas nesse sentido específico. Não estou afirmando que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos semelhantes de rigor na preparação de profissionais, contratação, etc., asseguram o rigor das teorias, técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu progresso seguro.

No tempo de Kardec as publicações periódicas eram em número bem menor e não haviam ainda assumido o papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico era veiculado principalmente em livros e memórias, publicados sob iniciativa individual ou das academias. Estas últimas ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel muito importante; as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois, mais centralizadas. Não raro isso deu margem a abusos e decisões erradas, como aliás observou Kardec várias vezes, ao discutir o caráter falível das corporações científicas. Hoje abusos e erros naturalmente ainda ocorrem, porém são geralmente detectados com mais facilidade pela enorme e integrada malha da comunidade científica.

* * *

O próximo artigo examinará alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas, destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.

Referências:

(Vários destes artigos encontram-se, ao lado de outros sobre temas correlacionados, disponíveis no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “A Ciência confirma o Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”, Reformador, junho de 1994, p. 176-80.

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com várias adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

Artigo publicado em Reformador, outubro de 1999, pp.


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Questões acerca da natureza do Espiritismo - III

Silvio Seno Chibeni

O presente artigo examina algumas questões ligadas ao aspecto religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado por Kardec ainda é objeto de discussão em alguns setores do movimento espírita.[1]

Questões:

a. Dentro dos conceitos atuais da ciência e da filosofia, como poderíamos classificar     o   Espiritismo? O que lhe parece a clássica apresentação do Espiritismo como uma         doutrina de conseqüências cientificas, filosóficas e religiosas?

b. Considerando essa forma de apresentar a doutrina, segundo seus aspectos básicos,          qual seria a diferença entre dizer-se “conseqüências religiosas” e “conseqüências                 morais”?
c. No GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo) tem-se discutido a aplicação da    designação de religião para o Espiritismo; aparentemente, não há divergências quanto à      sua classificação como ciência e filosofia. Segundo a filosofia, o que caracteriza uma            religião? Quais os limites entre ciência, filosofia, moral e religião? O Espiritismo é    uma religião?

Respostas:

A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma de expressão. Dizer que ele é uma doutrina “de conseqüências” científicas, filosóficas e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia com bases científicas e implicações morais.

Quanto aos itens (b) e (c), cumpre lembrar inicialmente que a moral (ou ética) é uma das áreas da filosofia, investigada com atenção por filósofos de todas as épocas, desde a Grécia Antiga até nossos dias. De modo muito simplificado, poderíamos defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam distinguir as ações em boas e más, certas e erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias, sistemas políticos, etc.

Nunca houve uma sociedade humana civilizada totalmente destituída de códigos morais que estabelecessem limites para as ações dos indivíduos. Nos primórdios da civilização tais códigos usualmente baseavam-se nas concepções religiosas vigentes, a seu turno amplamente dependentes do ensino de indivíduos considerados especiais, tais como profetas, pitonisas, gurus, etc. Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor de meios incomuns, sobrenaturais, de comunicação com a própria Divindade ou divindades; suas doutrinas eram, pois, tidas como “revelações”.

Especialmente a partir do Renascimento (séculos XV e XVI), a autoridade moral das religiões estabelecidas em tais bases começou a ser mais e mais questionada. O movimento intelectual de valorização das faculdades cognitivas naturais – a razão e a observação – encontrou terreno preparado pelas fragilidades teóricas do revelacionismo religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido, legitimado ou participado diretamente de ações em franco desacordo com um certo sentido ético natural do ser humano (discriminações, perseguições, torturas, assassinatos, etc.).

Sob a influência vigorosa de grandes filósofos do período moderno, entre os quais cumpre destacar o inglês John Locke (1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem. Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de deliberações e acordos tácitos ou explícitos de grupos laicos. Os filósofos acadêmicos modernos desenvolveram seus estudos éticos sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis umas com as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.

A moral sempre constituiu parte integrante das religiões. No entanto, estas não se resumem à proposição e defesa de sistemas morais, incluindo, de modo típico, cultos, liturgias e rituais diversos, hierarquias, princípios teológicos abstratos sem relação direta com a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra, aliás, o que mais repulsa causou aos chamados “livres-pensadores”, responsáveis pela renovação da filosofia e da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por um processo compreensível de exacerbação, ao ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história da humanidade.

Perdidas as bases religiosas tradicionais, a ética teve dificuldades para estabelecer princípios de conduta objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível na sociedade hodierna, que é o chamado relativismo ético, segundo o qual o que é certo ou errado, bom ou ruim, depende da pessoa, do grupo social, da época, etc. De forma oportunista, intelectuais (ou pseudo-intelectuais) têm explorado esse canal para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos individuais ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a degeneração das estruturas psicológicas e sociais.

No campo da filosofia acadêmica, existem propostas éticas não-religiosas que procuram refutar o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os sistemas éticos racionalistas, ou aprioristas, como o de Immanuel Kant (1724-1804), e o utilitarismo, que encontra raízes em Locke, mas só foi desenvolvido mais explicitamente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se afirmar com razoável segurança que o efeito prático dos sistemas éticos do primeiro tipo sobre as sociedades contemporâneas é quase nulo, por razões que não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda proposta, embora a palavra ‘utilitarismo’ tenha impropriamente adquirido uma conotação negativa fora dos círculos filosóficos, é inegável que repercutiu de forma profunda no estabelecimento dos melhores sistemas sociais existentes, quer do ponto de vista material, quer dos direitos humanos e do fomento às artes, ciências e filosofia. Mesmo nessas sociedades, porém, assiste-se hoje a crescente desvalorização das avaliações a longo prazo das ações humanas e ao esquecimento dos princípios filosóficos seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo amplo espaço para o referido relativismo moral.

Quando devidamente compreendido, o Espiritismo traz contribuições importantes para todo esse panorama da ética, tão imperfeitamente esboçado aqui. Refinando e estendendo o conhecimento acerca do ser humano, ele permite a elaboração de uma ética objetiva e clara, explorando, com adaptações, a vertente de Bentham e Mill. Tratei desse assunto nos artigos “Os fundamentos da ética espírita” e “A excelência metodológica do Espiritismo” (seção 5), que devem ser consultados para o desenvolvimento ulterior desta resposta.

Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou que com o conhecimento científico espírita a moral deixa de ser uma questão de especulações abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo das conseqüências das ações humanas, em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via da razão e da experiência coincide com aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo “[dá] por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.

Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os demais seres, o Espiritismo torna-se “o mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec nos lúcidos comentários adidos às questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis e práticas exteriores, sendo antes uma religião no sentido próprio do termo, a re-ligação da criatura ao Criador.

A velha questão de se o Espiritismo é ou não uma religião não admite, pois, resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo ‘religião’. Esse ponto foi lucidamente estudado e, a meu ver, esgotado, no artigo de Kardec intitulado justamente “Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu na Revue Spirite de 1868. Para encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso texto:

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, evocando unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente bem instruído.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
* * *

No próximo artigo desta série começarão a ser abordadas algumas questões acerca da ciência espírita e temas correlacionados.

Referências:

CHIBENI, S. S. “A excelência metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e dezembro de 1988, p. 373-378. (Disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
––. “Os fundamentos da ética espírita”, Reformador, junho de 1985, p. 166-9.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
––. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s. d.)
––. Le Spiritisme est-il une religion? In: L’Obssession.Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l’Union Spirite, 1950. (Uma tradução confiável para o vernáculo, de Ismael Gomes Braga, pode ser encontrada no Reformador de março de 1976.)

Notas

[1] O conteúdo do texto corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.

Artigo publicado em Reformador, setembro de 1999, pp. 280-282.


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