Questões acerca da natureza
do Espiritismo - IV
Silvio Seno Chibeni
Neste artigo são tecidas
algumas considerações acerca da ciência oficial ou acadêmica, que serão úteis
para o esclarecimento de certas questões sobre a ciência espírita, nos artigos
subseqüentes desta série.[1]
Questão:
Costuma-se dizer que a
“ciência” aprova ou rejeita determinado ponto. O que devemos entender por isso?
Existe realmente uma “posição oficial” da ciência? Nesse caso quais seriam os
órgãos ou pessoas que poderiam ter tal prerrogativa, de determinar a posição
oficial da ciência? Parece-nos que na época de Kardec essa frase normalmente se
referia às grandes academias e aos órgãos oficiais dos estados europeus. Há
hoje algo equivalente?
Resposta:
A autoridade de que a
ciência desfruta hoje em dia entre o público em geral pode ser aquilatada pelo
fato de ser freqüentemente explorada para induzir à aceitação de determinadas
teses, processos, sistemas políticos, produtos de consumo, etc. Há um efeito
quase que intimidador associado à rotulação de algo como ‘científico’. Bens de
consumo variados, desde cremes dentais até sofisticados aparelhos
eletrodomésticos são ditos terem sido elaborados por processos científicos, ou
submetidos a testes científicos. Geralmente despreparadas para avaliar por si
próprias se, em cada caso, a qualificação é ou não pertinente, as pessoas
tornam-se vítimas de manipulações diversas.
Mesmo no plano das idéias e
teorias – e isso é o que mais de perto nos interessa aqui –, a demanda por
cientificidade é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história do
pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos, procuram de alguma
forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas e bem sucedidas, como a
física, a química e a biologia, inquestionavelmente consideradas científicas.
Em nome desse processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras
aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento das disciplinas
nascentes ou em vias de consolidação. Embora a proposta de aprender-se algo
acerca da natureza da ciência, ou do chamado “método científico”, pela inspeção
das disciplinas paradigmaticamente científicas seja adequada e mesmo
indispensável, a falta de preparo filosófico tem amiúde levado ao seu fracasso
parcial ou total.
Bastante diverso foi o
resultado alcançado por Allan Kardec no desenvolvimento do Espiritismo.
Possuidor de sólida formação filosófica e científica, ele soube imprimir às
investigações dos novos fenômenos um cunho genuinamente científico, conforme
procurei destacar nos artigos da lista de referências bibliográficas. A ciência
espírita, cujos fundamentos ele lançou, têm por objeto de estudo o elemento
espiritual do ser humano. Esse elemento manifesta-se em múltiplos fenômenos
psicossomáticos, anímicos e mediúnicos, sendo estes últimos os que
desencadearam as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis
básicas da teoria.
Nos referidos trabalhos,
argumento, ademais, que o Espiritismo constitui a única abordagem científica
disponível para essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas após
ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções de concepção, por falta,
entre outras coisas importantes, de uma adequada percepção das diferenças de
objetos de estudo relativamente às ciências exatas. Em sua lucidez, Kardec
reconheceu-as prontamente, apontando-as em diversas de suas obras, como por
exemplo no item 7 da Introdução de O Livro dos Espíritos e ao longo das
primeiras partes de O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou
então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades dos fenômenos de
que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência lógica, simplicidade, poder
explicativo, abrangência, coerência e integração harmônica com ciências
limítrofes, atributos igualmente necessários para qualquer disciplina que
queira fazer jus ao título de ‘científica’.
Feitas essas observações
preliminares (que serão parcialmente desenvolvidas nos artigos restantes desta
série), posso adentrar agora mais diretamente o tópico específico da pergunta
formulada. Felizmente, posso poupar-me à maior parte da tarefa, recomendando ao
leitor a consulta dos artigos de Aécio P. Chagas, “O que é a Ciência?” e “A
Ciência confirma o Espiritismo?”, incluídos na lista de referências
bibliográficas. Nesses trabalhos a questão da ciência oficial, relativamente
aos interesses espíritas, foi tratada de modo seguro e esclarecedor. Não me
cabe aqui reproduzir seu conteúdo. Limitar-me-ei a relembrar alguns dos tópicos
principais da análise do Prof. Chagas, estendendo um pouco a discussão para
responder de forma explícita a pergunta que foi feita.
Uma distinção importante
destacada nos trabalhos mencionados é aquela entre “ciência-conhecimento”,
“ciência-atividade” e “ciência-comunidade”. Quando se afirma que a ciência
aprova isso ou aquilo, a frase é passível de dupla interpretação: Ou significa
que a coisa faz parte (ou pode ser deduzida) do corpo teórico paradigmático de
uma das ciências maduras (física, química e biologia); ou, em sentido
secundário, que a comunidade científica tem uma opinião mais ou menos geral a
seu respeito, embora ela ainda não faça parte de nenhuma teoria bem
estabelecida.
A idéia de uma “posição
oficial” da ciência só é razoável se entendida com referência às teorias que, à
época, integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não existe na
ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos)
que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a
distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se
encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa,
agências de fomento e, principalmente, os periódicos especializados.
Os profissionais acadêmicos
não ignoram que os jornais e revistas especializados canalizam hoje o grosso da
produção científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em inglês se
chama de “double-blind refereeing”: os trabalhos submetidos para publicação são
enviados anonimamente a vários membros conceituados da própria comunidade
científica, que os examinam criticamente e anonimamente. Teses discrepantes dos
paradigmas que não sejam maciçamente apoiadas por evidências experimentais e
argumentos racionais são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer
que conflitam com a “posição oficial”, mas apenas nesse sentido específico. Não
estou afirmando que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos
semelhantes de rigor na preparação de profissionais, contratação, etc., asseguram
o rigor das teorias, técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu
progresso seguro.
No tempo de Kardec as
publicações periódicas eram em número bem menor e não haviam ainda assumido o
papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico era veiculado
principalmente em livros e memórias, publicados sob iniciativa individual ou
das academias. Estas últimas ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel
muito importante; as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois, mais centralizadas.
Não raro isso deu margem a abusos e decisões erradas, como aliás observou
Kardec várias vezes, ao discutir o caráter falível das corporações científicas.
Hoje abusos e erros naturalmente ainda ocorrem, porém são geralmente detectados
com mais facilidade pela enorme e integrada malha da comunidade científica.
* * *
O próximo artigo examinará
alguns aspectos das relações entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas,
destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse respeito.
Referências:
(Vários destes artigos
encontram-se, ao lado de outros sobre temas correlacionados, disponíveis no
site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
CHAGAS, A. P. “O que é a
Ciência?”, Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “A Ciência confirma o
Espiritismo?”, Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
CHIBENI, S. S. “Espiritismo
e ciência”, Reformador, maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência
metodológica do Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e
dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”,
Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”,
Reformador, junho de 1994, p. 176-80.
Notas
[1] O conteúdo do texto
corresponde, com várias adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao
GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do
Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição
extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site
http://www.geae.org. Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o
aproveitamento do material nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos
seus membros Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A.
Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.
Artigo publicado em Reformador, outubro de 1999, pp.
Leitura Recomendada;
AS
PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA
ESPÍRITA
ALGUMAS
ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A
PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS
RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A
RELIGIÃO ESPÍRITA
REVISÃO
DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O
ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS
NO ESPIRITISMO
AS
ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR
QUE ALLAN KARDEC?
O
PARADIGMA ESPÍRITA
A
EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html
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