Na
excelente obra Os Cátaros e a Heresia Católica, Hermínio Miranda discorre
detalhadamente a respeito das características da linda sociedade cristã,
cátara, que floresceu na região do Languedoc, no sul da França, nos idos do
século XIII. Considerada herética pela Igreja Católica, em razão de afrontar
resolutamente dogmas já pétreos, através dos quais se via o legado espiritual
de Jesus para o mundo completamente distorcido, dentre as convicções de
vanguarda defendidas pelos crentes cátaros existia, já, a da evolução do
espírito ao longo das vidas sucessivas; e também tratavam sobre as ocorrências
mediúnicas que, para aquele povo simples dos séculos XII e XIII, constituíam-se
não mais do que em fatos comuns, com os quais lidavam com naturalidade, e dos
quais falavam naturalmente para as suas crianças.
Viram-se,
assim, em apuros, na conjuntura delicada do momento histórico no qual começaram
a ameaçar o poderio religioso e político da Igreja, ao passo em que iam
amealhando crescente simpatia em regiões várias da Europa. E, com a investida
das Cruzadas Albigenses e, em sequência, encurralados pela Inquisição em tempos
imediatamente posteriores, quis o poder do clero extinguir, decidida e
definitivamente, aquele povo e suas ideias mais fiéis aos verdadeiros
ensinamentos de Jesus – respeitando como iguais as mulheres e a liberdade de
pensamento; refutando duramente a pompa das hierarquias sacerdotais e vários de
seus dogmas centrais, e, sobretudo, falando abertamente de mediunidade e
reencarnação, um conceito em absoluto renegado pelo Alto Clero nos postulados
da doutrina cristã, nada embora tivesse o próprio Cristo discorrido sobre eles
com naturalidade, ao longo de sua missão sacrificial.
A
obra de Hermínio Miranda trata com brilhantismo ímpar do tema, e, em seu
conteúdo, oferece-nos a narração de um caso interessante, que ilustra aos
espíritas atuais que a realidade do dom da mediunidade é atributo comum ao ser
humano de hoje como em todo tempo histórico, indistintamente. Narra o caso de
Arnaud Gélis, um personagem peculiar do começo do século XIV que, naqueles
tempos difíceis de martírios, era médium confesso. Submetido ao cerco férreo da
Inquisição, no entanto, continuou agindo e falando não mais do que do mesmo
modo natural, espontâneo, sincero, sobre a sua convivência diária com os
espíritos, que diante dele se materializavam e conversavam, sem cerimônia,
provenientes das mais disparatadas situações sociais; dotados de variegadas
características individuais, de personalidade, temperamentos e, mesmo,
vestimentas – para profunda ira de seu inquisidor, Jacques Fournier, bispo de
Pamiers – e, aliás, futuro papa - resoluto em atribuir heresia a todo aquele
que afrontasse a prepotência Católica em definir o que, ao ser humano comum,
deveria ser considerado como expressão da verdade no que se referia ao que os
postulados religiosos queriam outorgar ditatorialmente, para melhor manutenção
do poder temporal e de domínio e manipulação das consciências do mundo.
Todavia,
não havia como Arnaud não se comportar, à compreensão despótica do inquisidor,
como um continuador encarniçado da já secular heresia cátara, se bem não fosse
ele, faticamente, um seguidor do catarismo - e não há, a esta altura, no século
XXI, um modo de descartarmos esta hipótese. Arnaud fora iniciado nas suas
práticas mediúnicas, conforme nos elucida Hermínio Miranda com base em seus
estudos históricos, justamente sob a batuta de um cônego da catedral de
Pamiers, Hugues de Dufort, por volta de 1311 ou 1312. Fora a orientação do
espírito de um cônego, assim, que levara Gélis a assumir a sua então tida como
“macabra” atividade de comunicação com os defuntos.*¹
Textualmente,
Miranda nos diz, às fls. 184 de sua obra:
“Gélis
não tinha culpa de ser médium. Os espíritos que ele via e com os quais
conversava e dos quais recebia recados a serem transmitidos aos vivos eram uma
realidade indiscutível. A realidade que Gélis testemunhava não conferia com a
que a Igreja adotara e impunha. Para o chamado cristianismo de então – e que
perdura até hoje – as almas dos ‘mortos’ têm que ficar quietinhas nos seus
túmulos até o dia mágico da ressurreição da carne, quando então lhes seria dada
a destinação final. Ainda que isto fosse admissível para as que tenham ido
parar no purgatório, não se aplicaria a mesma norma para as que teriam ido para
o céu ou para o inferno. Já não são, estas, destinações definitivas? Ademais,
as almas pareciam ignorar os dogmas e as proibições e continuavam a se
manifestar ao pobre médium.
Para
a desgraça de Gélis, ele as via por toda parte e com elas se entendia. Os
sacerdotes mortos, por mais elevadas que tenham sido suas posições hierárquicas
no mundo dos vivos – bispos e até arcebispos – não estavam no céu, e sim
perambulando pelos lugares ermos, obviamente infelizes, perdidos, sem rumo nem
destino (...)”
Mas
não era só Dufort que se apresentava aos colóquios com Gélis, mas “muitos
outros veneráveis cônegos, como Hugues de Ros, Athon d’Unzent, Pierre Durand. O
cenário em que se manifestavam era aquele mesmo que frequentaram enquanto
“vivos” – o claustro dos mosteiros ou as igrejas às quais estavam ligados (...)
Os mortos, segundo Gélis, sentiam frio no inverno e tinham sede no verão.(...)
“*²
Hermínio
menciona em parágrafos posteriores que, segundo o conteúdo da obra de Christian
Bernardac, estudioso histórico, inclusive, simpático à causa e às
interpretações católicas distorcidas do catarismo, na qual encontramos a
descrição desses registros inquisitoriais, Arnaud Gélis não seria considerado
um mal intencionado ou fraudador consciente - mas visionário alucinado! Um
pobre infeliz, auto iludido, crente nas próprias fantasias, provavelmente,
induzidas pelas influências do diabo. Muito provavelmente, padecendo de
distúrbios mentais!
Ora,
amigo leitor e leitora, onde, e em quantas vezes, nos tempos atuais, já vimos a
repetição da mesma história? De vez que, em muitos quesitos importantes, vitais
mesmo, os dogmas cristãos em nada se modificaram, e em se observando a
trajetória daqueles que hoje em dia, guardadas as semelhanças de compreensão
destas realidades da vida, bem poderiam ser taxados de neocátaros, em quantos
episódios não soubemos de semelhante perseguição desfechada por pessoas que
apenas se transferiram de séculos, repetindo, nem mais nem menos, do que as
mesmas vivências infortunadas contra Arnaud Gélis?
Descartando
a bem-vinda circunstância de não mais haver tribunais inquisitoriais – hoje
travestidos para modalidades mais sutis de repressão, diluídos na sociedade –
quantos casos semelhantes já não nos chegaram ao conhecimento, ou foram
duramente experimentados por aqueles de nós, de dentro do Movimento Espírita?
Fatos lamentáveis havidos com médiuns de todas as esferas de ação, ou com
aqueles cujas atividades são de maior expressão pública, como Chico Xavier ou
Divaldo Franco, ilustram, ainda hoje, a intolerância, a brutal incompreensão
originada na ignorância mais absoluta dos detalhes da realidade destes
acontecimentos comuns, de interatividade entre habitantes das esferas corpóreas
e incorpóreas!
O
‘nunca ninguém voltou para contar como é’, para nossa profunda perplexidade,
ainda impera em milhares de mentalidades e corações mal informados sobre o que
vige nas leis imutáveis do Criador para a destinação de todas as criaturas.
Resultado de séculos malfadados de adulteração da verdade maior e definitiva
pelas religiões institucionalizadas, para favorecer interesses temporais de
poder e dominação das consciências reencarnadas no mundo em lento processo de
avanço espiritual, eis-nos, ainda, médiuns atuantes de maior ou menor expressão
pública, às voltas com a cegueira das reações das massas para com aquilo que
constitui não mais do que manifestação cotidiana de uma lei natural - apenas
que ainda mal compreendida pelas mentalidades adormecidas e pela ciência
renitente nos paradigmas obsoletos para a aferição do funcionamento dos
mecanismos maiores que regem a vida no universo.
Não
haveria, pois, naqueles tempos, como Arnaud Gélis agir de modo diverso da
sinceridade cristalina com que lidava com a simples expressão pessoal da
realidade diária de sua convivência multidimensional - como hoje, também, não
há outro caminho, mais honesto, mais reto, aos médiuns contemporâneos, do que
resistir bravamente à ainda opressora resistência dos investimentos de
interesse ou das limitações individuais para se aceitar pacificamente o que
simplesmente não podemos mais negar ou rejeitar, em detrimento de uma verdade
mais ampla das coisas.
É,
pois, finda a era de se favorecer mentiras que não merecem prevalecer por mais
tempo, num mundo que, com atraso, deve deixar para trás o lastimável estado de
quarentena cósmica causada pela resistência do ser humano em avançar
espiritualmente, não nos permitindo, assim, a benção de nos colocarmos em
situação de cidadãos universais, em coexistência pacífica com os habitantes dos
muitos mundos e dimensões das mais variadas expressões vitais espalhados pelo
infinito.
É
o exigível, para a consolidação de uma humanidade menos egoísta e mais
responsável, em bases meritórias de responsabilidade própria, por um futuro de
maior felicidade, harmonia e entendimento, com avanços significativos em todos
os níveis de convivência que haverão de transportar a Terra, de fato, para o
estágio mais grato de planeta de regeneração.
*¹
- Hermínio Miranda – Os Cátaros e a Heresia Católica – Ed. Lachátre – Capítulo
Uma Reformatação do Catolicismo – pág. 184
*²
- Hermínio Miranda – Os Cátaros e a Heresia Católica – Ed. Lachátre – Uma
Reformatação do Catolicismo – pág. 184 e seguintes.
Christina Nunes
meridius@superig.com.br
Rio de Janeiro - RJ
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