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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Profecias bíblicas


“O resultado final de um acontecimento pode, portanto, ser certo, por se achar nos desígnios de Deus; como, porém, quase sempre, os detalhes e o modo de execução se encontram subordinados às circunstâncias e ao livre-arbítrio dos homens, podem ser eventuais os caminhos e os meios.”1

HAROLDO DUTRA DIAS

Ao discorrer sobre o fenômeno da predição do futuro, em sua magnífica obra A Gênese, o Codificador esclarece que a Providência Divina regula os acontecimentos que envolvam interesses gerais da Humanidade, salientando que os homens concorrem para a execução dos desígnios divinos, mas nenhum deles é indispensável ao seu cumprimento, visto não estar o Criador à mercê de suas criaturas.

Por esta razão, “os detalhes e os modos de execução” constituem estratégias da Providência Divina, que podem variar segundo o grau de adesão da Humanidade aos propósitos celestes, que buscam invariavelmente o progresso e o aperfeiçoamento intelectual e moral dos seres humanos.

O livre-arbítrio do homem, relativo e sempre subordinado à vontade soberana do Criador, pode opor inúmeros obstáculos ao progresso individual e coletivo, como também pode representar poderosa alavanca na execução desses desígnios.

Em matéria de predição dos acontecimentos concernentes ao futuro da Humanidade, ou seja, no tocante à profecia bíblica, urge compreender e meditar a respeito das questões acima mencionadas, de modo a não incorrer em falsas interpretações ou em alarmismo inconveniente.

Nunca é demais lembrar que o amor e a misericórdia Emmanuel mais uma vez nos socorre na tarefa de interpretação deste versículo:

Muita gente insiste pela rigidez e irrevogabilidade das determinações de origem divina, entretanto, compete-nos reconhecer que os corações inclinados a semelhante interpretação, ainda não conseguem analisar a essência sublime do amor que apaga dívidas escuras e faz nascer novo dia nos horizontes da alma.
Se entre juízes terrestres existem providências fraternas, qual seja a da liberdade sob condição, seria o tribunal celeste constituído por inteligências mais duras e inflexíveis?
A Casa do Pai é muito mais generosa  que qualquer figuração de magnanimidade apresentada, até agora, no mundo, pelo pensamento religioso. Em seus celeiros abundantes, há empréstimos e moratórias, concessões de tempo e recursos que a mais vigorosa imaginação humana jamais calculará.3 (Grifo nosso.)

O Altíssimo conjuga todas as providências e recursos para que o progresso das almas se efetue em clima de harmonia e paz, sob os auspícios do seu infinito amor. A tormenta, o desajuste, o desequilíbrio e a expiação decorrem do abandono voluntário do Amor Divino.

Não há determinações rígidas e irrevogáveis nos códigos celestes. Se o condenado4 pela justiça humana é acompanhado durante o cumprimento de sua pena, tendo em vista a possibilidade da concessão de diversos benefícios, dependendo do seu comportamento na prisão, não há razão para aguardar comportamento diverso da Providência Divina, no curso das nossas expiações e provas.

Pelo contrário, a programação espiritual de uma existência ou de um iclo de progresso da civilização humana é sempre feita com base em cálculos de probabilidade.

Os caminhos são tão intricados e dependem de tantas variáveis que lembram uma teia de aranha, com suas vigorosas ramificações.

Nessa linha interpretativa, Emmanuel assim se expressa:

Cada homem possui, com a existência, uma série de estações e uma relação de dias, estruturadas em precioso cálculo de probabilidades. [...]5
Nesse contexto, podemos asseverar que todas as predições/profecias da Bíblia se acham subordinadas a um paradoxo, que pode ser expresso nos seguintes termos: “A profecia é revelada para que não se cumpra”.

A afirmação pode causar certa estranheza ao leitor. Pensando nisto, transcrevemos a seguir o trecho de uma entrevista concedida pelo médium Francisco Cândido Xavier sobre o assunto em estudo, que muito tem nos auxiliado na compreensão desse palpitante tema:
Jonas pregando para o ninivitas

O Célebre Nostradamus assinala os meses de julho e outubro de 1999 como sendo o período final do tempo que estamos atravessando; com a ocorrência de imensos cataclismos astronômicos e sociais. Nostradamus deve ser levado a sério?

– Com respeito às profecias de Nostradamus que, aliás, devemos estudar com o maior respeito ao mensageiro humano dos vaticínios conhecidos, pede-nos Emmanuel para lermos com meditação a Parábola de Jonas no Antigo Testamento.6(Grifo nosso.)

Sendo assim, no tocante ao cumprimento das profecias, sobretudo as bíblicas, o paradigma deve ser a Parábola de Jonas, encontrada no Antigo Testamento (Jonas, 3-4), segundo nos orienta o Benfeitor Emmanuel.

O profeta Jonas foi encarregado de transmitir à cidade de Nínive tenebrosos vaticínios de destruição e morte, caso os cidadãos daquele local não se arrependessem dos seus erros.

Todavia, contrariando as expectativas do profeta, os habitantes de Nínive se arrependeram, passando a viver segundo as determinações da Lei Divina, motivo pelo qual a profecia foi anulada, não obstante a revolta de Jonas, que se sentiu humilhado pelo suposto fracasso da sua missão.

Quando o profeta descansava do Sol ardente, sob a sombra de uma mamoneira, Deus enviou vermes que destruíram a planta, expondo o profeta novamente ao calor escaldante.

Diante da revolta de Jonas, Deus exclamou, na instrutiva parábola do Velho Testamento:

“Tu tens pena da mamoneira, que não te custou trabalho e que não fizeste crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei pena de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil seres humanos, que não distinguem entre direita e esquerda, assim como muitos animais!”7

Sendo assim, considerando-se o infinito amor de Deus por todas as suas criaturas, bem como o caráter pedagógico de toda revelação acerca dos acontecimentos futuros, individuais ou coletivos, é lícito asseverar que “a profecia é revelada para que não se cumpra”.

Fonte: Reformador  Ano 128  Nº 2. 172 • Março 2010

1KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2009. Cap. 16, item 14.
2Ap., 2:21. Tradução do articulista.
3XAVIER, Francisco C. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 29. ed. 2. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2009. Cap. 92, p. 199-200.
4Na legislação brasileira, o condenado, durante a execução de sua pena, é chamado de “reeducando”, o que revela a nova visão humanista do Direito Penal.
5XAVIER, Francisco C. Vinha de luz. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. 1. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2008. Cap. 113, p. 258.
6XAVIER, Francisco C.; ARANTES, Hércio M. C. Autores diversos. Encontros no tempo. São Paulo: IDE, 1979. Cap. 1, q. 6.
7Bíblia de Jerusalém. 3. imp. São Paulo: PAULUS, 2004. Jonas, 4:10-1, p. 1.633.


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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O LIVRE-ARBÍTRIO1

  O que é o livre-arbítrio? A história do pensamento registra grandes e profundas reflexões a este respeito, o qual, em essência, significaria a capacidade que temos de fazer livremente as nossas escolhas, escolhendo fazer ou não fazer aquilo que queremos.

Mas será que somos realmente livres? Será mesmo que temos livre-arbítrio para escolher aquilo que queremos? Somos impelidos a responder pela afirmativa, pois nossas experiências diárias normalmente nos dão provas de que, sempre que nada exterior o impeça, eu faço aquilo que quero. Porém a questão de fundo é outra, bem mais complexa, profunda e intrigante: será que eu sou livre para querer aquilo que eu quero?

Duas correntes se formaram ao longo da história da filosofia para responder a esta questão. Conheçamos um pouco cada uma delas2.

A primeira corrente, que remonta às tradições filosóficas representadas modernamente por Descartes e Kant, entende que o livre-arbítrio do ser humano seria completamente arbitrário. O ser humano, portanto, seria capaz de sempre fazer qualquer escolha possível diante de qualquer situação. É dizer: entre dez escolhas possíveis a chance de escolher qualquer uma delas vai ser sempre igual, ou seja, de dez por cento.

Essa primeira tradição filosófica é a que foi adotada por praticamente todas as vertentes filosóficas espiritualistas, pois é com ela que se torna possível isentar Deus do mal que existe no mundo. O homem seria criado totalmente livre para escolher e fazer seu caminho, não sendo, portanto, culpa do Criador se a capacidade de escolha do homem, sempre absoluta, é usada para o mal. Caberia ao homem apenas sofrer as consequências de suas escolhas, para o bem ou para o mal, nesta ou noutra vida.

Já a segunda corrente, que é muito bem representada pelo pensamento de Spinoza e de diversos filósofos materialistas, defende que o livre-arbítrio, se é que existe, não é absoluto, pois o homem seria condicionado a fazer suas escolhas a partir daquilo que ele é. Se alguém escolhe ser mau, é porque ele é mau, porque a natureza o condicionou a tanto, desde que ele surgiu no mundo, para que ele assim o fosse. Portanto, o livre-arbítrio, entendido enquanto faculdade de sempre escolher o que se quer, seria uma espécie de ilusão, posto que, em verdade, não seríamos livres para querer aquilo que queremos.
Spinoza chega mesmo a propor uma imagem interessante, ao comparar aexistência do livre-arbítrio à “convicção” de uma pedra que pensa escolher ocaminho que percorre enquanto cruza o ar até o local onde vai cair.

Essa segunda tradição filosófica é a que encontramos em praticamente todas as filosofias materialistas, que entendem que o homem nada mais é do que um agregado de átomos, células e experiências de vida, que são o que verdadeiramente definem aquilo que ele é e, portanto, aquilo que ele quer. Seu livre-arbítrio seria sempre condicionado. Suas escolhas não poderiam ser diferentes daquelas que ele faz. Fica fácil perceber, portanto, a razão de praticamente nenhuma filosofia de tradição ou vertente espiritualista ter se filiado a esta segunda corrente, pois Deus passaria a ser culpado pelo mal que há no mundo. Afinal, se alguém pratica o mal e se esse alguém o pratica porque é mal (foi criado mal), então a culpa do mal praticado é daquele que o criou: Deus.

Então o Espiritismo, assim como as outras correntes filosóficas de tradição espiritualista, também partilharia da ideia de que somos absolutamente livres? É o que poderíamos concluir de uma leitura isolada da questão 121 de O Livro dos Espíritos:

121. Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal?

“Não têm eles o livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, isto é, tendo tanta aptidão para o bem quanta para o mal. Os que são maus, assim se tornaram por vontade própria.”

Contudo, não é isto que pensamos, se fizermos uma leitura atenta da obra de Kardec. Isto porque, segundo a doutrina espírita, nossa capacidade de escolha é sempre limitada, limites estes que são impostos justamente por aquilo que somos e pelo que já conseguimos nos tornar. Vejamos algumas passagens das obras kardequianas em que fica claro o modo como os Espíritos ensinam o livre-arbítrio:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”3

Vê-se, portanto, que o nosso espírito é o resultado de um processo de construção do próprio espírito, feito ao longo de várias encarnações. Neste processo, somos inúmeras vezes mergulhados dentro dos limites do corpo físico (reencarnações), inclusive sofrendo as influências que o organismo imprime à alma. É o que precisamos relembrar pela leitura de algumas questões de O Livro dos Espíritos:

370. Da influência dos órgãos se pode inferir a existência de uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o das faculdades morais e intelectuais?

“Não confundais o efeito com a causa. O Espírito dispõe sempre das faculdades que lhe são próprias. Ora, não são os órgãos que dão as faculdades, e sim estas que impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.”

a) – Dever-se-á deduzir daí que a diversidade das aptidões entre os homens deriva unicamente do estado do Espírito?

“O termo unicamente não exprime com toda a exatidão o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado. Cumpre, porém, se leve em conta a influência da matéria, que mais ou menos lhe cerceia o exercício de suas faculdades.”

Encarnado, traz o Espírito certas predisposições e, se se admitir que a cada uma corresponda no cérebro um órgão, o desenvolvimento desses órgãos será efeito e não causa. Se nos órgãos estivesse o princípio das faculdades, o homem seria máquina sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos. Forçoso então seria admitir-se que os maiores gênios, cientistas, poetas, artistas, só o são porque o acaso lhes deu órgãos especiais, donde se seguiria que, sem esses órgãos, não teriam sido gênios e que, assim, o maior dos imbecis teria podido ser um Newton, um Vergílio, ou um Rafael, desde que de certos órgãos se achassem providos. Ainda mais absurda se mostra semelhante hipótese, se a aplicarmos às qualidades morais.
Efetivamente, segundo esse sistema, um Vicente de Paulo, se a Natureza o dotara de tal ou tal órgão, teria podido ser um celerado e o maior dos celerados não precisaria senão de um certo órgão para ser um Vicente de Paulo. Admita-se, ao contrário, que os órgãos especiais, dado existam, são consequentes, que se desenvolvem por efeito do exercício da faculdade, como os músculos por efeito do movimento, e a nenhuma conclusão irracional se chegará. Sirvamo-nos de uma comparação trivial, não obstante verdadeira. Por alguns sinais fisionômicos se reconhece que um homem tem o vício da embriaguez.
Serão esses sinais que fazem dele um ébrio, ou será a ebriedade que nele imprime aqueles sinais? Pode dizer-se que os órgãos recebem o cunho das faculdades.4

Vê-se assim que o espiritismo talvez seja a única filosofia espiritualista que defende o livre-arbítrio como uma faculdade que nunca é absoluta, pois nossas escolhas estão condicionadas àquilo que somos. Sim, somos livres para escolher o que queremos, mas nem sempre para querer o que queremos.
Nosso espírito, portanto, escolhe a partir daquilo que ele é. Se somos egoístas, invejosos, ciumentos, orgulhosos, enfim, viciosos e imperfeitos, então nossas decisões tenderão a obedecer os impulsos dados por essas características. Se somos generosos, humildes, caridosos, enfim, virtuosos e bons, então nossas decisões tenderão ao bem. Um espírito imperfeito não é capaz de fazer as mesmas escolhas de um espírito puro, pois aquele ainda precisa passar pelo processo de depuração que o faça galgar os degraus evolutivos da escala espírita5. Tais reflexões mostram como a doutrina espírita talvez acabe por se localizar filosoficamente muito mais próxima das correntes materialistas e spinozistas do que das espiritualistas tradicionais.

Façamos o teste e imaginemos, com alguns exemplos, se somos mesmo tão facilmente livres para escolher diante das seguintes situações: não ficar com raiva quando somos xingados ou agredidos; não sentir medo diante de uma situação que nos assusta; não sentir ciúme diante de alguém que amamos; confiar nas pessoas quando a esmagadora maioria das experiências que tivemos na vida nos induz a não confiar; uma criança dar-se a comer verduras quando sobre a mesa de refeições se encontram outras guloseimas; etc.

Então estaríamos fadados a nos conformar com o nosso ser, com aquilo que somos? Estamos então condenados a ser, agir e escolher apenas de acordo com aquilo que nos tornamos? Como sair desse círculo vicioso? Eis aqui a grande mudança de perspectiva proposta pelo espiritismo, pois ao tempo em que essa doutrina nos esclarece que estamos limitados a escolher a partir daquilo que somos, ela também nos esclarece que podemos, pela nossa vontade, mudar nossa natureza, inclusive tornando-nos capazes de escolher diferentemente do que escolhemos ao longo de todas as nossas existência precedentes, bem como na atual. Dissemos que a doutrina espírita é “mais próxima”, e não perfeitamente idêntica às filosofias materialistas, justamente porque a estas correntes de pensamento faltavam as peças capazes de explicar com maior exatidão esse complexo quebra cabeças chamado livre arbítrio, peças estas que são precisamente os conceitos de imortalidade da alma, de reencarnação e de progresso.

 Pelo conceito de imortalidade da alma, entendemos que não somos apenas matéria e que continuamos a existir após a morte do corpo físico, preservando todas as nossas características e tendências, intelectuais e morais. Pela ideia de reencarnação, passamos a compreender que o espírito já teve outras existências e que habitou multiplas moradas corpóreas, manifestando nos corpos em que reencarna as tendências, boas e más, que acumulou ao longo de suas existências pretéritas. Pela lei de progresso, enfim, fica claro que podemos e devemos evoluir ao longo de cada nova encarnação, as quais tem por objetivo justamente nos propiciar as condições necessárias para que possamos dar mais alguns passos no processo de aperfeiçoamento do espírito, rumo à nossa perfeição.

Portanto, o livre-arbítrio, segundo a espiritismo, não é um atributo pronto e acabado, recebido como uma “graça” de Deus, mas sim uma conquista do espírito, que é obtida ao longo de incontáveis encarnações e à medida que este evolui, tanto intelectual quanto moralmente, o que só ocorre ao longo e a partir do jogo de escolhas “tentativa-erro tentativa-acerto”, que nos demanda muito tempo. A natureza não dá saltos, e o homem, enquanto espírito perfectível, também faz parte da natureza.

Não fosse assim, seríamos absolutamente culpados por não conseguirmos agir tal qual um espírito puro, como Jesus, já mesmo em nossa encarnação atual. Não seríamos perdoáveis. Mas assim como um pai não exige de seus filhos pequenos que estes ajam como adultos, também Deus não exige perfeição de seus filhos (espíritos) que ainda estão atolados em processos e mundos – como a terra – carregados de limites e imperfeições.
Compreender isto é muito importante, pois faz com que adquiramos consciência para não viver nos culpando por ainda não sermos aquilo que achamos que já poderíamos ser.

Feitas estas considerações, fica bem mais fácil compreender porque o espírito pode até estacionar por um certo tempo em seu processo evolutivo, porém  amais degenerar, escolhendo assim, por exemplo, deixar de ser bom ou puro para voltar a ser imperfeito6. Daí porque é incompatível com a doutrina espírita qualquer teoria que defenda a “queda” do espírito, tais aquelas encontradas em correntes religiosas ou filosóficas que afirmam que a origem do mal ou do demônio residem na rebelião de um ou mais anjos contra Deus.
Afinal, se o espírito já é bom ou puro, segundo a escala espírita, então ele não pode mais fazer escolhas próprias de um espírito imperfeito, simplesmente porque não consegue, porque não é mais esta a sua natureza.

A partir de todas estas reflexões, restam ainda mais claras as razões pelas quais os espíritos nos recomendam a tolerância e a indulgência para com o próximo, pois não podemos exigir das pessoas atitudes que, pelo menos em determinado momento existencial, elas não podem ter. Misericórdia para todos, e para nós mesmos, pois ainda estamos aprendendo a fazer escolhas. Nas palavras de Sponville:

“Trata-se de compreender alguma coisa. O que? Que o outro é mau, se for, ou que está enganado, se estiver, ou que é fanático ou dominado por suas paixões, se paixões ou ideias o dominarem, enfim que lhe seria difícil, em todo caso, agir ao contrário do que ele é (por que milagre?) ou de se tornar subitamente bom, doce, razoável e tolerante... Perdoar:aceitar. Não para cessar de combater, é claro, mas para cessar de odiar.”7

Contudo, não podemos fazer deste conhecimento algo que nos leve ao comodismo. Lembremos que nossa vontade de mudar ainda é muito pequena.
Muitas vezes dizemos “quero deixar meus vícios”, mas muito satisfeitos ficamos que as coisas não sejam como “queremos”8. Contudo, se por um lado dificilmente poderemos nos tornar espíritos bons9 nesta encarnação, por outro os Espíritos também tem sempre insistido que nos é possível, mesmo na encarnação que vivemos agora, no planeta terra, conseguir evoluir a um ponto tal que não nos seja nem mesmo necessário reencarnar mais neste mundo. A este propósito, rememoremos a questão 909 de O Livro dos Espíritos:

909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?

“Sim, e por vezes fazendo esforços bem pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos dentre vós fazem esforços!”

Podemos ver, enfim, que é a partir desse jogo dialético que as mudanças ocorrem em nosso espírito: eu transformo minha natureza a partir das diferentes escolhas que vou fazendo; e passo a fazer escolhas diferentes quando consigo mudar minha natureza. O processo é assim mesmo, aparentemente contraditório e que nos faz lembrar aquilo que em lógica échamado de “petição de princípio”10. Porém não é difícil concluir, empiricamente, analisando a vida dos outros e a nossa própria, que isso efetivamente ocorre, pois muitos de nós somos capazes, hoje, de já fazer algumas escolhas que alguns anos atrás eram absolutamente impensáveis.

Nossa história registra vários exemplos de homens que conseguiram fazer mudanças significativas na sua natureza, pois deram mostras, em uma mesma encarnação, de que no início de suas vidas ainda carregavam tendências características de espíritos imperfeitos, mas alguns anos depois já eram exemplos dignos de bons espíritos. É o caso de personalidades como Paulo de Tarso, Santo Agostinho e São Vicente de Paulo, dentre outros.

Diante destes exemplos, e de tantos outros até mesmo menos conhecidos, o estudioso mais atento do espiritismo poderia objetar que, em oposição ao ponto de vista aqui exposto sobre o livre-arbítrio, existiriam algumas passagens da obra kardequiana capazes de contrariá-lo11.
Entendemos, contudo, que não há oposição entre estas ideias, a não ser a partir de um ponto de vista puramente teórico. Importante registrar, contudo, que não devemos tratar a “vontade” como sinônimo de “livre-arbítrio”. O fato é que este é um assunto que também guarda uma certa complexidade – para não dizer polêmica – filosófica, não sendo esta a oportunidade adequada para desenvolvê-lo. Correríamos o risco de misturar prolongadamente o estudo desses temas12, o que não é o caso quando se trata apenas de um breve artigo. Longe estamos, porém, de pretender nos arrogar como detentores da verdade. Estudemos mais, reflitamos mais. Todos nós!

Deste modo, vê-se que, segundo o nosso entendimento da teoria espírita, o espírito não foi criado com livre-arbítrio, mas sim para, dentre outras coisas, adquirir livre-arbítrio. Contudo, esta conquista do livre-arbítrio nunca será absoluta – nem mesmo para o espírito puro, que não pode escolher degenerar –, pois sempre teremos nossas escolhas condicionadas à nossa natureza, àquilo que somos.

Assunto encerrado? De modo algum! Esperamos, contudo, que com este pequeno texto tenhamos podido despertar no leitor um pouco mais de desejo de mergulhar à fundo na obra de Kardec e dos grandes filósofos a fim de entender um pouco mais sobre esse tema tão rico, complexo e apaixonante que é o livre-arbítrio. Podemos até não nos tornar mais sábios, mas se pelo menos conseguirmos ficar menos ignorantes a tentativa já terá valido à pena.

Daniel A. Lima – 05 de outubro de 2012

Referência;

1 Para um estudo abrangente do assunto, recomendamos o áudio nº 23 do “Estudo das Paixões”, que
pode ser acessado pelo link http://www.geak.com.br/site/upload/midia/mp3/releitura-dos-itens-118-893-
2 Para um estudo mais abrangente do assunto, inclusive destas duas correntes, recomendamos a leitura do capítulo “Livre-Arbítrio”, no livro “Apresentação da Filosofia”, de André Comte-Sponville.
3 Confirmando o entendimento de que o livre-arbítrio se desenvolve à medida que o espírito progride, veja-se também as questões 122, 540, 564, 609, 780, 844, 847 e 849 de O Livro dos Espíritos.
4 Sobre as influências do organismo, ver também as questões 845 e 846 de O Livro dos Espíritos.
5 Fazemos menção à “Escala Espírita” tratada por Allan Kardec nas questões 100 a 113 de O Livro dos Espíritos.
6 Este assunto é tratado na questão 118 de O Livro dos Espíritos.
7 André Comte-Sponville, em “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, cap. 9 (Misericórdia), p. 134.
8 Ver a questão 911 de O Livro dos Espíritos.
9 “Bons” segundo a escala espírita.
10 A Petição de Princípio é uma forma de inferência que consiste em adotar, para premissa de um
raciocínio, a própria conclusão que se quer demonstrar. Ocorre sempre que se admite nas premissas o
que se deseja concluir. O caso mais óbvio é a mera repetição. Exemplo: “uma pessoa odeia as pessoas
de outra raça, porque é racista.”
11 Ver, por exemplo, O Evangelho Segundo o Espiritismo » Capítulo IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos » Instruções dos Espíritos » A cólera » Item 10
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=3217&idioma=1), bem como o texto da Revista Espírita de Julho de 1963 intitulado “Poder da vontade sobre as paixões”
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=5475&idioma=1).
12 Sobre o tema, ver, p. ex., a obra “Viver”, de André Comte-Sponville, Ed. Martins Fontes, cap. “Os
Labirintos da Moral”, Ed. Martins Fontes, 2ª edição, 2008, p. 174.