Ademir L. Xavier Jr.
1 - Considerações Iniciais:
A nosso ver, têm ocorrido
recentemente alguns abusos que se exteriorizam na forma de afirmações, que
acreditamos um tanto descabidas, publicadas em diversos periódicos espíritas e
obras diversas. Elas são todas concernentes ao contexto em que o Espiritismo
pode ser (pretensamente) inserido no conjunto das ciências modernas. Tais
abusos tentam, de uma maneira algo desesperada, não só estabelecer uma possível
conexão entre o Espiritismo e as demais ciências ordinárias (principalmente a
Biologia, Química e notadamente a Física) como também justificar a Doutrina
Espírita diante de tais disciplinas. Nosso objetivo aqui é estabelecer as
causas principais de tal movimento, apontando sua prescindibilidade e seu
aspecto prejudicial ao Movimento Espírita.
O que move a tentativa acima
mencionada de justificar a importância do Espiritismo via ciência, bem como sua
possível interpretação científica diante de outras doutrinas científicas são,
basicamente, a falta de compreensão do aspecto científico real do Espiritismo,
a ignorância em relação ao verdadeiro significado da Ciência (como ela opera e
se estabelece) e, de algum modo, um certo gosto por novidades, modernismos e
fatos extraordinários.
O aspecto científico do
Espiritismo anunciado por Kardec está, ao que parece, longe de ser compreendido
em sua última expressão dentro do atual Movimento Espírita. Não compreendendo
os ingredientes essenciais e suficientes que identificam uma doutrina como
sendo genuinamente científica (ingredientes que o Espiritismo possui
completamente), busca-se uma adequação da Doutrina Espírita dentro dos moldes
do puro empirismo, ou de outra forma, lançando mão de argumentos em torno do
indutivismo ingênuo. Há, de uma maneira ou de outra, um forte apelo ao senso
comum.
Para avaliarmos
completamente o aspecto científico do Espiritismo é necessário o emprego da
análise moderna da Filosofia, mais precisamente o ramo que estuda a teoria do
conhecimento científico ou Epistemologia da Ciência. Não entraremos aqui nos
detalhes dessa análise, aliás um tanto complexa, afirmamos apenas que tal
estudo já pode ser encontrado, e indicamos ao leitor o lugar onde encontrá-lo
(ver Chibeni 1988 e 1994).
Uma possível fonte de
confusão entre a relação Espiritismo e as demais ciências é gerada, muitas
vezes, pela falta de significado preciso para certas palavras. Os exemplos são
muitos, um clássico é o da palavra energia. Há diversos significados ligados a
essa palavra, e é necessário imenso cuidado em se especificar claramente tais
significados. Na Física Clássica, por exemplo, ela designa uma qualidade
inerente aos corpos materiais, que permanece latente até que certas condições
sejam satisfeitas. Não é infreqüente o uso do termo energia por diversos
autores espirituais, mas nesse caso, nenhuma tentativa de associação direta com
o significado implicado pela Física pode ser inferido. Existem, entretanto,
muitos autores (encarnados, é claro!) que parecem confundir, não poucas vezes,
as duas acepções possíveis, sugerindo uma tradução da energia de que falam os
Espíritos em termos da energia usada na Física, nossa velha conhecida.
De outras vezes, a
precipitada justificativa científica do Espiritismo segue a freqüente moda de
justificação científica feita em outras doutrinas, como por exemplo a Teosofia
e doutrinas orientalistas (ver, por exemplo, Phillips 1980). Essa justificativa
caracteriza-se por uma tentativa de inserção de certas idéias religiosas, na
maioria das vezes de origem oriental, no contexto de recentíssimas descobertas
ou modelos da Física contemporânea. É natural que haja pessoas que pensem ser
necessário o mesmo procedimento com o Espiritismo. Não compreendem, entretanto,
que a Doutrina Espírita já possui uma base científica própria, e que a natureza
do fenômeno que ela estuda, bem como o estado atual de nosso conhecimento sobre
a matéria não permitem uma conexão tão direta entre a Física, por exemplo, e o
Espiritismo. Além disso, é necessário que se saiba que muitos dos modernos
modelos da Física (como exemplo, o diversos modelos teóricos de interação entre
partículas e campos no microcosmo) sofrem radicais revisões todos os dias. O
Espiritismo, por sua vez, tem uma estrutura muito mais estável, porque repousa
em fenômenos de caráter mais diretamente observável, sendo suas afirmações de
muito maior confiança7. É certo que o Espiritismo guarda uma relação com as
outras ciências, mas os fatos espíritas, por si sós, já asseguram uma especial
independência de seu objeto de estudo com o das demais ciências materiais. Não
obstante, essa independência foi muito bem identificada e analisada por Kardec
em O que é o Espiritismo.
Dentro do Movimento
Espírita, muitas vezes a anunciação de descobertas gerais das ciências
materiais (como a Física, com seus novos modelos acerca do funcionamento do
Universo) é feita, em geral, tendo por base obras de divulgação científica (ver
Chagas 1995) que, a nosso ver, pecam por falta de precisão da discussão das idéias,
sem contar com a dificuldade inerente de se expressarem conceitos altamente
abstratos, muitas vezes (como, por exemplo, a unificação do espaço e do tempo
em um contínuo quadri-dimensional, a dilatação do tempo, etc., da Teoria da
Relatividade Restrita) em termos de uma linguagem mais acessível ao leigo. Isso
implica, idealmente, a tentativa de fazer o não especialista compreender
plenamente tais conceitos, tais quais são dentro da teoria em que estão
inseridos. É bastante clara a impossibilidade de tal tentativa. Se desprezarmos
os erros grosseiros de tradução que muitos textos de divulgação trazem, quando
de origem estrangeira, concluímos que eles podem, no máximo, passar ao leitor
não especialista uma idéia vaga de tais conceitos. Ora, assim sendo, uma
importante questão seria: Que valor pode ter a tentativa de se relacionar
conceitos e fundamentos das ciências ordinárias com fundamentos importas de
Doutrina Espírita, quando tal intento é feito tão-só baseando-se em textos de
propaganda científica? A precariedade de tradução, a dificuldade de expressão
apropriada dos conceitos, bem como a transitoriedade das teorias que tais
textos podem trazer são suficientes para termos uma idéias clara da resposta a
essa questão.
Relacionada à dificuldade de
entendimento do aspecto científico real do Espiritismo está a profunda falta de
informação existente nos meios espíritas ( o que é, no nosso entender, bastante
natural) e, por que não dizer, acadêmicos (o que já não parece tão natural
assim), em torno do conceito de Ciência. Mais uma vez, um apelo à Epistemologia
se faz necessário (ver Chibeni 1988 e 1994, Chalmers 1976). As implicações
dessa ignorância são as eternas e mal fundamentadas críticas ao Espiritismo
feitas por diversas escolas parapsicológicas e demais adeptos das denominadas
"ciências psi" (Chibeni 1988). Esses rejeitam, explicitamente, a
idéia do Espírito como causa envolvida em grande parte, se não em todos, dos
posteriormente denominados "fenômenos paranormais". Assim agindo,
queremos deixar claro ao leitor, tais escolas são levadas por uma idéia
ultrapassada de Ciência, bem como por concepções obsoletas do método
científico.
2 - Um Exemplo:
Um exemplo um tanto
exagerado das confusões com relação às questões expostas anteriormente pode ser
encontrado no artigo "Matéria e antimatéria" (Reformador, abril
1994). O autor inicia dizendo que "a ciência terrestre chama de matéria
tudo o que tem energia e massa, é sólido (...) ou fluídico (...) e ocupa lugar
no espaço e no tempo". Essa afirmação, de caráter geral, confere à matéria
determinadas propriedades como, por exemplo, massa, mas não pode ser usada para
caracterizar certos tipos de matéria no universo. O ponto crítico está onde é
afirmado:
"É de antimatéria o
plano vital em que se movem os Espíritos desencarnados."
E, mais abaixo:
"É pela diferença de
sinalização de carga elétrica dos elementos que formam o 'plano invisível' que,
em condições normais, não o percebemos fisicamente."
Em nenhum lugar dentro da
bibliografia espírita, escrita por autores abalizados e de peso, podem ser
encontradas ou sequer deduzidas tais afirmações. Muito ao contrário, das obras
de Kardec tem-se claramente que o mundo espiritual constitui um universo
paralelo, totalmente independente do material, tanto que, ainda que o mundo
material perecesse, o espiritual continuaria existindo. Isso porque matéria e
espírito são dois princípios independentes no universo com uma origem
desconhecida. As questões 25, 26, 27, 84, 85 e 86 de O livro dos Espíritos, são
suficientes para esclarecer quaisquer dúvidas. Vejamos, por exemplo, a questão
86:
"O mundo corporal
poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a
essência do mundo espírita?
Decerto. Eles são
independentes; contudo, é incessante a correlação entre ambos, porquanto um
sobre o outro incessantemente reagem."
Por outro lado, o que a
Física estabelece como certo com respeito à antimatéira torna absurdas as
afirmações propostas acima relacionadas ao mundo espiritual. Conforme H. Alvén
(1965), que foi ganhador do Prêmio Nobel em 1970, em "Propriedades da
Antimatéria":
"A teoria de Dirac do
elétron e a descoberta do pósitron criou a crença de que toda partícula possui
sua correspondente antipartícula. Essa crença foi confirmada pela descoberta do
antipróton. Todas as outras partículas parecem Ter também antipartículas. Disso
se conclui que os "antiátomos" devem existir, e são semelhantes aos
átomos ordinários, com núcleos formados de antiprótons e nêutrons envoltos por
pósitrons. Tais antiátomos devem Ter as mesmas propriedades dos átomos
ordinários. Eles devem formar compostos químicos similares aos compostos
químicos ordinários, que emitem linhas espectrais a exatamente os mesmos
comprimentos de onde dos átomos ordinários." (Grifo nosso.)
Assim sendo, as propriedades
da antimatéria são as mesmas da matéria ordinária, ou, em outros termos,
antimatéria é o nome dado a um tipo especial da matéria! Por outro lado, a
existência da antimatéria foi confirmada experimentalmente 10, assim como a
impossibilidade de coexistência simultânea de matéria e antimatéria. Essa é,
também, a causa da inexistência natural de antimatéria em nosso mundo. Está
claro, entretanto, que de nenhum lugar, nem do atual conhecimento da Física,
nem da Doutrina Espírita, semelhantes afirmações podem ser inferidas.
3 - A Não Necessidade e os
Perigos:
Do que foi exposto, é
bastante óbvio que as tentativas de inserção do Espiritismo no contexto das
modernas teorias científicas, bem como sua justificação diante da academia
estabelecida, o que visa um tanto à sua valorização, são totalmente
desnecessárias. De fato, elas são desnecessárias porque, tendo como objetivo de
estudo algo que não se identifica como sendo a matéria ordinária, o Espiritismo
consegue suficiente independência com relação às demais doutrinas científicas
que estudam a matéria, para caracterizar-se como um ramo independente de
conhecimento. Não só por isso, pelo caráter harmônico com que os princípios
espíritas interagem entre si, fruto de sua boa fundamentação, pela maneira com
que estão estabelecidos tais princípios e por suas bases experimentais, pode-se
considerar a Doutrina Espírita como uma teoria genuinamente científica no
sentido epistemológico moderno. Essa doutrina tem como objetivo o estudo do
elemento espiritual, e não se confunde de nenhuma maneira com as demais
ciências, embora guarde alguma relação com elas. Lembramos, também, que Allan
Kardec jamais se atreveu a tentar interpretar os novos conceitos que descobriu
de acordo com os conhecimentos científicos de sua época. Se o tivesse feito,
não sabemos quais teriam sido as conseqüências, desastrosas com certeza, ao
posterior desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita.
Os prejuízos de uma campanha
indiscriminada que visa a ressaltar ou inferir precipitadamente semelhante
relação podem ser facilmente previstos. Tais prejuízos podem não ser grandes
para aqueles que já possuem um conhecimento considerável do corpo doutrinário
espírita, mas o que dizer dos iniciante? Quantas confusões totalmente
desnecessárias podem ser evitadas nas mente dos principiantes em Espiritismo se
certas afirmações simplesmente não forem feitas? Acreditamos não serem poucas.
O verdadeiro trabalho
espírita está no aprimoramento do espírito humano em sua bagagem moral, na
sublimação dos instintos humanos, vertendo-os em valores divinos, em suma, no
progresso moral do mundo. Para isso, sim, o estudo acurado e cauteloso é
imprescindível. Também por isso, experimentações científicas detalhadas no
campo espírita só podem ser feitas com a expressa colaboração do Plano
Espiritual superior que, para isso, exige uma definitiva demonstração desses
valores divinos em nós. (Ver No Mundo Maior, de André Luiz, p. 31.)
Referências:
Chibeni,
S. S. "A excelência metodológica do Espiritismo", Reformador, novembro
de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp. 373-378.
Chibeni,
S. S. "O paradigma espírita", Reformador, junho de 1994, pp. 176-80.
Phillips, S. M. Extra-Sensory perception of Quarks,
Wheaton, Illinois, Theosophical Publishing House, 1980.
Kardec, A.
O que é o Espiritismo, 36a ed., FEB.
------. O
livro dos Espíritos, 75a ed. FEB.
Chagas, A.
P. "A Ciência confirma o Espiritismo?" Reformador,
jul. 1995.
Chalmers, A. F. What is this thing called science? St.
Lucia, University of Queensland Press, 1976.
"Matéria
e antimatéria", Reformador, abr. 1994.
Alvén, H. "Antimatter and the Development of the
Metagalaxy", Rev. Modern Phys., vol. 37, p. 652, 1965.
André
Luiz, No Mundo Maior (psic. F. C. Xavier), 19a ed., FEB.
(Artigo publicado em Reformador de agosto de 1995, pp. 244-46. Digitado por Cristina em 5/98)Ademir L. Xavier Jr.
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