Questões acerca da natureza
do Espiritismo - VII
Silvio Seno Chibeni
Encerrando a série, o
presente artigo ressalta a necessidade de se prosseguir no desenvolvimento das
pesquisas científicas espíritas ao longo das linhas traçadas pelo próprio
programa espírita de investigação iniciado por Kardec, em integração com os
outros aspectos do Espiritismo.[1]
Questão:
Algumas pessoas alegam que a
ênfase religiosa tem prejudicado os aspectos científicos da doutrina, propondo
um “Espiritismo não-religioso” ou “laico”. Dizem que a pesquisa espírita tem
sido relegada a segundo plano, ou que praticamente não existe. O que
caracterizaria uma pesquisa científica espírita? Seria um ramo separado da
ciência ou uma postura diferenciada dentro dos ramos atuais? O que poderia ser
feito para incentivar o desenvolvimento dessa pesquisa?
Resposta:
Como foi ressaltado no
terceiro artigo desta série, a genuína religião está na busca e cultivo de
princípios morais capazes de nos colocar em harmonia com o plano da Criação,
transformando-nos gradualmente em seres felizes que espalham felicidade ao seu
redor. Assim entendida, a religião integra-se naturalmente à ciência espírita,
pois que é esta que determina as conseqüências globais das ações humanas a
curto e longo prazos, formando a base experimental sobre a qual a razão operará
para identificar os preceitos de conduta que nos aproximem da felicidade. Ver,
portanto, antagonismos ou tensões quaisquer entre a religião e a ciência
espíritas constitui evidência de pouco estudo e pouca reflexão sobre a
verdadeira índole do Espiritismo.
Infelizmente, o despreparo e
os atavismos de muitos indivíduos que colaboram de boa vontade nas fileiras
espíritas fazem com que certas práticas pouco condizentes com a pureza
doutrinária se implantem em diversas instituições, e acabem mesmo divulgadas em
palestras, livros e periódicos ditos espíritas. Quem compreende essa situação
deve trabalhar para modificá-la. Mas a via para isso é a do esclarecimento, do
estudo, do convencimento pela razão e pelo amor, jamais os anátemas ou, o que é
ainda pior, o repúdio daquilo que se supõe ser o “aspecto religioso do
Espiritismo”.
É provável, aliás, que essa
“rejeição do bebê com a água do banho” tenha pesado muito no declínio e virtual
extinção do movimento espírita em países europeus a partir, digamos, do início
do século. Não se pode mutilar um corpo doutrinário integrado, como o é o
Espiritismo, sem arcar com efeitos drásticos, seja qual for a área em que o
tenhamos atingido. (Em movimento oposto ao indicado na questão, pode-se querer
desprezar as bases científicas do Espiritismo, e as conseqüências não seriam
melhores.)
A esse respeito, são
expressivas as palavras do presidente da Union Spirite Française et
Francophone, Roger Perez, em recente entrevista concedida ao jornal paranaense
Universo Espírita (ver referências). Perguntado sobre se teria uma explicação
para o quase desaparecimento do movimento espírita na França (até sua recente
renovação), inicia sua lúcida e firme resposta nestes termos (o destaque é
meu): “Sim. Há uma muito simples. Quando o Espiritismo não é aplicado com as
regras ditadas por Allan Kardec, ele morre.”
Quanto à pesquisa científica
espírita, acredito que sua natureza já tenha sido salientada indiretamente nos
artigos precedentes desta série. Em artigo publicado em 1991 sob o título “A
ciência espírita” abordo explicitamente o tema, ainda que de forma breve,
lembrando que constitui equívoco imaginar que essa pesquisa deva dar-se nas
mesmas instituições e com os mesmos métodos e pressupostos teóricos que os das
ciências da matéria. O reconhecimento desse ponto seria de suma importância
hoje em dia, quando se nota uma inclinação de muitos espíritas na direção de
linhas de pesquisa científica e filosoficamente primitivas relativamente à do
genuíno Espiritismo.
A afirmação de que não se
têm realizado pesquisas científicas espíritas parece resultar de uma
compreensão deficiente do que sejam a ciência e o Espiritismo. Após as
fundamentais realizações de Allan Kardec, que instituíram o paradigma
científico espírita, outros investigadores encarnados e desencarnados
prosseguiram em sua extensão, não necessariamente em laboratórios acadêmicos,
porque não é aí que os fenômenos relativos ao espírito podem mais apropriadamente
ser estudados, mas nos centros espíritas, no recesso dos lares, no mundo
espiritual e onde quer que se possa observar e refletir sobre a face espiritual
do ser humano.
Gosto de dar como exemplos
de pesquisadores espíritas André Luiz, Philomeno de Miranda e Yvonne Pereira,
dentre tantos outros, que, num trabalho silencioso e fecundo, enriqueceram o
acervo de informações e reflexões sobre os fenômenos anímicos e mediúnicos, as
condições da vida no plano espiritual, a lei de causa e efeito, etc. Quem ler
suas obras apenas superficialmente, ou com inadequado senso científico, tenderá
a ver nelas apenas romances, historietas e narrações literárias, quando na
realidade seu objetivo primordial é bem outro.
No referido artigo, aponto,
a título ilustrativo e de modo muito esquemático, algumas áreas importantes de
investigação espírita. Transcrevo aqui a lista, com adaptações: [2]
Evolução do espírito: o
elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores, origem dos espíritos
humanos, encarnação e reencarnação, pluralidade dos mundos habitados.
O mundo espiritual:
constituição, leis que o regulam, interação com o mundo material.
Interação espírito-corpo:
perispírito, efeitos psicossomáticos, mediunidade.
Implicações morais (uma área
científica e filosófica): livre-arbítrio, lei de causa e efeito.
Em suma, o incentivo e
incremento das pesquisas científicas espíritas deve principiar com a
identificação e o abandono de abordagens incipientes ou pseudo-científicas,
prosseguir com a adesão às linhas de pesquisa paradigmáticas da doutrina, e
passar ao estudo filosófico das conseqüências da ciência espírita para a
questão de nosso acerto com as normas morais evangélicas, sem o que essa
ciência se tornará estéril.
Referências:
(Os dois primeiros artigos
encontram-se, ao lado de outros acerca de temas correlacionados, disponíveis no
site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482.)
CHAGAS, A. P. “As provas
científicas”, Reformador, agosto de 1987, p. 232-33.
CHIBENI, S. S. “Ciência
espírita”, Revista Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
PEREZ, R. Entrevista
concedida a Universo Espírita, ano 3, n. 30, dezembro 1998, p. 4-6.
Notas
[1] O conteúdo do texto
corresponde, com algumas adaptações, a parte de entrevista concedida por mim ao
GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação do
Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim n. 300 (edição
extra), que circulou em 7/7/1998, podendo ser encontrado no site http://www.geae.org.
Gostaria de agradecer ao GEAE a anuência para o aproveitamento do material
nesta série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros Ademir L.
Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A. Iglesia Bernardo, por
haver reunido as relevantes e oportunas questões.
[2] “Ciência espírita, p.
49-50. Note-se que não incluí o tópico “comprovação da existência do espírito”,
pela razão exposta na segunda parte do artigo precedente: trata-se de uma
questão já resolvida, preliminar ao Espiritismo propriamente dito, e na qual
não devem as investigações estacionar. Para esse ponto, ver também o artigo “As
provas científicas”, de Aécio P. Chagas.
Artigo publicado em
Reformador, janeiro de 2000, pp. 24-25.
Leitura Recomendada;
AS
PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA
ESPÍRITA
ALGUMAS
ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
AS
RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A
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REVISÃO
DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O
ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS
NO ESPIRITISMO
AS
ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR
QUE ALLAN KARDEC?
O
PARADIGMA ESPÍRITA
A
EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
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