sábado, 7 de junho de 2014

O SEGREDO DE ALLAN KARDEC

Homenagem ao sesquicentenário de “O Evangelho segundo o Espiritismo” (1864-2014).

Adilton Pugliese

Relata o escritor Richard Simonetti, que “no livro A República, Platão, filósofo grego que viveu entre 428 e 348 a.C., coloca nos lábios do também filósofo grego Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), interessante metáfora, ou seja, um sentido figurado, relacionada com nossa visão da realidade: numa caverna vivem seres humanos. Ali nasceram. Dali nunca saem. Estão acorrentados, em tal disposição, que só podem observar o que está à sua frente. Por trás deles arde uma fogueira. A luz do fogo projeta sombras na parede. É tudo o que veem. Seu mundo é feito de sombras”.

O que pode ser deduzido dessa imagem, dessa metáfora que ficou conhecida como o mito da caverna? “A caverna simboliza as limitações impostas pelos sentidos e pela ignorância. Impedem as pessoas de ver o mundo real, que Platão chama universo das ideias. A fogueira é a experiência sensorial que pouco ilumina, projetando sombras de ilusão nas paredes existenciais”.

“Alguém desenvolve a sensibilidade, supera a ignorância, conquista o saber, e então, deixa a caverna. Num primeiro momento, deslumbra-se com a luz solar, a visão gloriosa da Natureza. Lamenta o tempo perdido, o comprometimento com as sombras... Decide ajudar os companheiros com sua experiência. Não é bem recebido. Não acreditam nele. Julgam que está delirando. Hostilizam-no”.(1)

Muitas criaturas na humanidade terrestre estão prisioneiras em suas cavernas íntimas. Como libertar-se do esconderijo, das prisões invisíveis ou visíveis que as prendem? Idealistas consideram que somente subvertendo a ordem, por meio de uma revolução, de conquistas, de um motim, de movimentos guerreiros e libertários.
Destacam historiadores que “nos séculos XI ao XIII oito expedições foram empreendidas pela Europa cristã da época, num movimento que ficou conhecido como Cruzadas, para libertar o chamado Santo Sepulcro das mãos dos muçulmanos, fato que aconteceu a partir de um Concílio realizado na cidade de Clermont em 1095 e que durou até 1291. Aos gritos de Deus o quer! foram quase duzentos anos de operação militar, sem que o objetivo fosse alcançado. É como se o mundo espiritual quisesse dizer aos homens: o importante não é onde o corpo de Cristo foi sepultado, mas seguir os Seus ensinamentos, pois são eles que conduzem a criatura na direção do seu progresso espiritual. São eles que libertam”.

Jesus sabia dessas lutas que os homens empreenderiam para libertar coisas e objetos, lugares e povos; para nos libertarmos dos vícios, das paixões e da violência e sintetizou, há mais de dois mil anos, o meio de conseguirmos a liberdade: “Então conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.(2) O que seria essa verdade? Onde e como encontrá-la?

Permita-me o leitor um depoimento pessoal. Estive, um dia, preso na caverna das ilusões, da insegurança e da incerteza, numa cruzada em busca de quimeras, até que num sábado à noite, há quase 40 anos, meu pai colocou em minhas mãos um livro extraordinário, de conteúdo libertador. Esse livro tem uma história e podemos dizer que ela começa no mesmo dia em que Allan Kardec publicou em Paris O Livro dos Espíritos.

Após os acontecimentos que envolveram a sua iniciação no Espiritismo, entre os anos de 1854 e 1855, o professor H.L.D. Rivail entra em contato, em fins de 1856, com o livreiro Dentu, na Rue Montpensier, no Palais Royal, em Paris, apresentando-lhe os manuscritos de O Livro dos Espíritos, em cuja capa grafara o pseudônimo que adotara para caracterizar o autor: Allan Kardec, seu antigo nome quando da reencarnação na personalidade de um sacerdote druida, conforme lhe fora revelado pelo Espírito Z..., ou Zéfiro.(3)

Cerca de quatro meses depois, exatamente em 18 de abril de 1857, pela manhã, retornavam da tipografia 1.200 volumes da primeira edição de O Livro dos Espíritos, de capa cor cinza, com 501 perguntas.(4) O livreiro conversava com seu amigo, o jornalista Du Chalard, do jornal Courier de Paris, a quem presenteara com um exemplar do livro, dizendo-lhe: “Este é o trabalho mais sério até hoje publicado na França, sobre os Espíritos; é uma obra edificante e serena”, e pede-lhe que dê, depois de ler o livro, o seu parecer aos leitores do jornal.(5)

E, efetivamente, mais tarde, na edição de 11 de junho de 1857, Du Chalard publica extenso artigo de sua autoria: “O Livro dos Espíritos, do Sr. Allan Kardec, é uma página nova do grande livro do infinito, e estamos convencidos de que esta página será assinalada (...). Não conhecemos o autor, mas confessamos, abertamente, que ficaríamos felizes em conhecê-lo. Quem escreveu a introdução de O Livro dos Espíritos deve ter a alma aberta a todos os sentimentos nobres”. “A todos os deserdados da Terra, a todos quantos avançam ou caem, regando com as lágrimas o pó da estrada, diremos: lede O Livro dos Espíritos; ele vos tornará mais fortes. Também aos felizes, aos que em seu caminho só encontram as aclamações da multidão e os sorrisos da fortuna, diremos: estudai-o e ele vos tornará melhores”.(6)

Um abade francês, de nome Leçanu, autor de um livro chamado História de Satanás, assim diz no seu livro: “Observando-se as máximas de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, faz-se o bastante para se tornar santo na Terra”. O escritor francês Victorien Sardou (1831-1908), leu a obra e antes mesmo de haver chegado ao fim da leitura, escreveu a Kardec elogiosa carta, destacando que O Livro dos Espíritos é o livro da vida, é o guia da humanidade.(7)

É com esses e outros depoimentos que Allan Kardec iniciaria a fase de Elaboração da Codificação. Declara Hermínio Miranda (1920-2013), ao analisar “A Obra de Kardec e Kardec diante da Obra”(8): “Concluindo o trabalho que lhe competia junto aos Espíritos ainda lhe resta muito a fazer, e o tempo urge. Incumbe-lhe agora inserir a nova doutrina no contexto do pensamento de seu tempo. É preciso estudar e expor aos homens os aspectos experimentais implícitos na Doutrina dos Espíritos. Desses aspectos, o mais importante, sem dúvida, é a prática da mediunidade, instrumento de comunicação entre os dois mundos. Sem um conhecimento metodizado da faculdade mediúnica, seria impossível estabelecer as bases experimentais da doutrina. Daí, ele prepara e lança, em Paris, em janeiro de 1861, O Livro dos Médiuns. Em seguida, é preciso dotar o Espiritismo de uma estrutura ética. Não seria preciso criar uma nova moral, já existia a do Cristo”.

Então, durante uma parte do ano de 1863, Allan Kardec guardou um segredo: ele estava escrevendo uma nova obra e a ninguém dera ciência do assunto; até o Sr. Didier, o seu Editor, somente tomou conhecimento da existência da obra quando do envio para impressão.
Em 9 de agosto resolve ouvir os Espíritos acerca do seu segredo, sobre o que eles pensavam a respeito, e obtém como resposta, para surpresa do Codificador, que “O novo livro teria considerável influência, pois que abordava questões capitais, e que não só o mundo religioso encontraria nele as máximas que lhe são necessárias, como também a vida prática das nações haurirá dele instruções excelentes”. E os Espíritos elogiam Kardec por ter abordado, no livro, as questões de alta moral prática, do ponto de vista dos interesses gerais, sociais e religiosos. Os Espíritos preveem que com esse livro Kardec teria grandes dificuldades e que seria violentamente atacado pelo clero da época (que se sentiria muito mais ferido do que com a publicação de O Livro dos Espíritos), mas declaram que confiam nele, na sua resistência, e dizem: “Ao te escolherem, os Espíritos conheciam a solidez das tuas convicções e sabiam que a tua fé, qual muro de bronze, resistiria a todos os ataques”.(9) (grifamos)

A esse novo livro Allan Kardec dera, preliminarmente, o título de Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo. Porém, mudou-o para O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO (a partir da segunda edição, em 1865), publicado como a terceira obra da Codificação Espírita, em abril de 1864. A reação foi a Sagrada Congregação do Index, em 1o de maio de 1864, incluir no seu catálogo todas as obras de Kardec sobre o Espiritismo(10)! Causou estranheza a medida extemporânea, mas logo foi compreendido que O Evangelho Segundo o Espiritismo provocara a decisão.

Foi esse livro que meu pai colocou em minhas mãos e eu coloquei no meu coração, e que mudaria a minha vida, certamente, para sempre. Na Introdução do livro, Allan Kardec explica o objetivo da obra: cada pessoa poder tirar dela os meios de conformar sua conduta moral à do Cristo. Enfatiza o Codificador que os espíritas nela encontrarão as aplicações que lhes concernem mais especialmente. O ensino moral, portanto, é a tônica fundamental de O Evangelho Segundo o Espiritismo e Kardec explica por que se fixou nessa parte das matérias contidas nos Evangelhos:(11)
– A parte moral exige a reforma de cada um.
– É uma regra de conduta, que abrange todas as circunstâncias da vida.
– É o caminho infalível da felicidade futura.
– É o princípio de todas as relações sociais fundadas na mais rigorosa justiça.
Realmente, a montagem da estrutura didática de O Evangelho Segundo o Espiritismo teve duas finalidades: (1) A explicação das máximas morais do Cristo em concordância com o Espiritismo e (2) Aplicações às diversas circunstâncias da vida, como Kardec exarou no frontispício da obra. Por que este livro, O Evangelho Segundo o Espiritismo, se tornou a obra espírita mais lida e aceita pelos brasileiros, com milhões de exemplares impressos em suas edições, sobretudo por parte da FEB Editora?

Pode-se afirmar que uma questão de fundamental importância da moral do Cristo, em nossas existências, é quanto às consequências de sermos espíritas. Conforme declara Deolindo Amorim (1906-1984), ao estudarmos a Doutrina, conhecemos a sua origem, sua constituição e sua natureza, mas, se depois de tudo isso, não resultasse daí alguma consequência, a Doutrina seria apenas indagação pura, ou, quando muito, simples “devaneio filosófico”. O coroamento de tudo quanto estudamos no Espiritismo está justamente na influência que os seus princípios devem ter nos atos de nossa vida.(12)

Saudamo-lo, então, Livro Luz¸ nos seus 150 anos de existência, e que as suas páginas, que expressam o amor de Jesus pela humanidade, possam continuar a iluminar as nossas vidas, para sempre, libertando os que se encontram nos redutos da ilusão e nas cruzadas das conquistas efêmeras.

Texto revisado pelo prof. Luciano Urpia.

1. SIMONETTI, Richard. Luzes no Caminho. 1ed.CEAC Editora, p.59.
2. JOÃO 8:32.
3. WANTUIL, Zeus. THIESEN, Francisco. Allan Kardec – Volume II, 1ed.FEB, p.74.
4. ABREU, Canuto. O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária, 1ed. Edições LFU, p.42.
5. IDEM, Ibidem, p.43 e 44.
6. WANTUIL, Zeus. THIESEN, Francisco. Allan Kardec – Volume II, 1ed.FEB, p.83.
7.. IDEM, Ibidem.
8. MIRANDA, Hermínio. Nas Fronteiras do Além. 1ed. FEB, p.16.
9. KARDEC, Allan. Obras Póstumas, 1ed. FEB, tradução de Evandro Noleto Bezerra, p.399.
10. WANTUIL, Zeus. THIESEN, Francisco. Allan Kardec – Volume II, 1ed.FEB, p.289.
11. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, 131ed. FEB, edição histórica, tradução de Guillon Ribeiro, Introdução.
12. DEOLINDO, Amorim. Doutrina Espírita. 1ed. Círculo Espírita da Oração, p.77.

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