Hermínio C. de Miranda
Não se pode medir a importância e profundidade das ideias dos pensadores pelo êxito que alcançam ao publicar as suas obras. Alguns sistemas filosóficos passam por um período mais longo ou mais curto de hibernação até que consigam despertar a atenção e o interesse dos leitores. Outros, que parecem surgir vitoriosos, fenecem com o tempo e cedem a praça a novos sistemas fascinantes à fantasia do homem na sua busca interminável da verdade.
Existirá alguma lei que determine ou que, pelo menos, explique
essas variações de êxito dos sistemas filosóficos? Parece que há. Para início
de conversa, creio poder afirmar-se que o êxito, em termos humanos, é uma
componente quantitativa mais do que qualitativa. Em outras palavras: o sucesso
é alcançado por aquele que consegue interessar o maior número de pessoas e não
pelo que tem o melhor sistema, a melhor peça teatral, o melhor romance, a mais
bela sinfonia. Por conseguinte, podemos também concluir que o êxito mundano de
um sistema filosófico depende da sua sintonia com o pensamento dominante de
cada época. Dando um passo mais à frente, parece legítimo afirmar, em
consequência, que pensador de êxito é aquele que consegue interpretar e
traduzir o sentimento e as tendências dominantes da sua época, ou, por outra,
que se afina com o estágio evolutivo das maiorias. Isto vale dizer que cada
época tem os filósofos que merece.
Não é difícil de demonstrar a tese. Pelas tendências da
sociedade moderna, podemos facilmente inferir os tipos predominantes de
pensadores e seus sistemas. E que vemos? Uma esmagadora maioria humana sem
rumo, num esforço desesperado para libertar-se dos conceitos fundamentais da
moral que, embora nem sempre bem observados, constituíram as bases de tudo de
positivo e construtivo que se realizou ao longo dos séculos. Aquilo a que hoje
assistimos é a busca desordenada da liberdade total, impossível em qualquer
sociedade organizada. Assistimos à procura do prazer a qualquer custo. E vemos
apreensivos a repetição de épocas dramáticas do passado, quando aprendemos,
através da História, que a fuga desesperada na direção do gozo inconsequente é
também uma fuga para longe de Deus.
O homem das megalópoles supercivilizadas é um ser sem rumo, tão
frágil na sua aparente segurança, tão abandonado aos seus próprios recursos
humanos, que não aguenta uma hora de solidão; quer estar cercado de ruídos, de
risos – ainda que falsos –, de alegria – ainda que contrafeita –, de movimento
– mesmo que arriscando a vida. Mas que é a vida para esse homem, senão apenas o
prazer de viver? Existir é a ordem do dia; não importa como, nem porque, nem
para que: o importante é existir pura e simplesmente, seguindo cada qual as
suas inclinações e preferências, fazendo o que bem entender, com o mínimo
possível de responsabilidade pessoal e social – apenas o necessário para
garantir a sobrevivência do corpo. Também, se o corpo morrer, não tem grande
importância, porque tudo termina mesmo com a morte… E quanto aos ruídos, os
risos, a alegria e os movimentos não conseguem anestesiar suficientemente os
sentidos, apela-se para o atordoamento produzido pela bebida e pelas drogas.
Dirá o leitor, algo alarmado, que esse é um retrato pessimista e
exagerado da civilização moderna. Talvez seja exagerado; pessimista não, porque
nem toda a humanidade está assim contaminada, graças a Deus. Dentro dela grupos
humanos equilibrados lutam por dias melhores, aparentemente bradando no
deserto, mas semeando a esperança do futuro, preocupados com a alucinação do
presente, mas certos do funcionamento inevitável das leis divinas que atuarão
no devido tempo para introduzir as correções necessárias.
Enquanto isso não ocorre, porém, é aquele o espetáculo a que
assistimos. E do meio do tumulto universal da insatisfação humana, que
filosofias e que pensadores vemos medrar vigorosamente e alcançar o sucesso?
Jean Paul Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir, Camus, e até Gabriel
Marcel, que pregam a ausência de Deus, o absurdo da existência, a liberdade
total para o homem escolher o seu próprio destino. São os papas e cardeais do
existencialismo, uma corrente de pensamento que só cuida do simples fato de
existir; o resto não importa, pois, segundo eles, a vida não tem mesmo
explicação, nem finalidade, nem sentido.
No campo da teologia, temos os pensadores da chamada teologia
radical. São eles William Hamilton e Thomas J. J. Altizer, que se dizem
teólogos – e luteranos! – de uma teologia sem Deus. Para eles, Deus morreu.
Para eles, não há mais, na sociedade moderna, lugar para Deus. A humanidade
precisa aprender a viver sem Deus. Pregam uma das grandes contradições do
século, ou seja, o ateísmo teológico. Repetem as palavras de outro luterano
famoso – Dietrich Bonhoeffer, executado pelos nazistas já ao fim da Segunda
Guerra, que assegurava ser perfeitamente possível viver sem Deus, sem desespero
e sem complexos de culpa.
No campo social vamos encontrar Herbert Marcuse, o profeta do
caos, que, com sua interpretação freudiana da História, deseja ver liberados
todos os instintos porque, segundo ele, o processo civilizador tem sido uma
sucessão de repressões. Por outro lado, numa contradição que nós, pobres
mortais, não entendemos muito bem, receita a liberdade excessiva que
transformaria a Terra num inferno. Suas doutrinas são tão nebulosas quanto sua
linguagem hermética, quase iniciática.
Aliás, os pensadores do nosso tempo – filósofos, teólogos e uma
boa parte dos cientistas – não escrevem mais para o grande público, gente como
você e eu: ao contrário, usam uma linguagem difícil, quase impenetrável ao
entendimento daqueles que não tiveram muito treinamento para isso. Praticamente
escrevem apenas para seus companheiros do mesmo ofício. Procurem ler, por
exemplo, “Eros e Civilização” ou “Ideologia da Sociedade Industrial”, de
Marcuse, e observem bem como é pequena a quantidade de ensinamentos que se
consegue filtrar daquela terminologia agreste e abstrata.
São esses, no entanto, os guias atuais da inquietação humana, os
orientadores dos que ainda não encontraram seus caminhos. São os que se afinam
com as tendências da época.
Não criaram propriamente um sistema; apenas converteram em
palavras as angústias e a desorientação da época em que vivem. E por estarem em
sintonia com a sua época, com a sua gente e com o estágio evolutivo dessa
gente, alcançam o êxito mundano, passam a ser os pensadores da moda.
Enquanto isso, doutrinas amadurecidas e puras como o Espiritismo
esperam a sua vez. Esperam que a humanidade as alcance, porque, pela sua
maturidade, exigem certo grau mínimo de maturidade de seus adeptos. Por isso,
Allan Kardec continua ignorado nas universidades, nos estudos de filosofia, nas
histórias do pensamento humano. Apesar da celeuma que levantaram as ideias que
ajudou a trazer para o mundo, foi também ignorado em sua época – não estava em
sintonia com as maiorias de então.
Ao nascer Allan Kardec em 1804, a França acabava de emergir das
crises e das agonias da Revolução Francesa. Brilhava o astro napoleônico e se
ensaiava uma reconstrução da sociedade em novas bases, aproveitando o
racionalismo, o cientificismo. Quase que junto com Kardec, com uma diferença a
mais de seis anos, nasceu também Augusto Comte, o filósofo do Positivismo,
doutrina escorada na frieza do fato observado. Fora da observação direta dos
sentidos humanos, nada era digno de especulação – estava na área da metafísica.
Nessa filosofia também não havia lugar para a sobrevivência do Espírito, nem
para Deus. O “Curso de Filosofia Positiva” foi publicado entre 1830 e 1842 e o
“Sistema de Política Positiva”, de 1851 a 1854. É praticamente a época em que
Kardec começou a se interessar pelo fenômeno das mesas girantes, de tão
tremendas consequências.
Em 1857, quando faleceu Comte, surgiu também “O Livro dos
Espíritos”. O Positivismo era uma doutrina vitoriosa, porque respondia às
tendências principais da especulação da época. O racionalismo frio dos
enciclopedistas era ainda recente e deixara profundas marcas nos Espíritos.
Comte trabalhara ativa e demoradamente esse terreno fértil e parecia realmente
sintonizar-se com as correntes dominantes dos intelectuais contemporâneos. Suas
doutrinas se espalharam pelo mundo, e aqui no Brasil, terra tão generosa para
as ideias novas, viriam influenciar os homens que lançavam as bases da
República. No entanto, apesar de todo o seu idealismo, do sentido humano, e da
predominância da moral, faltou à doutrina de Comte o sentido superior da
existência. Para ele, eram estéreis as especulações em torno do Espírito e da
ideia de Deus, que nem mesmo como hipótese de trabalho entrava nas suas
cogitações. Depois da partida dos Espíritos encarnados que lhe davam
ressonância, o Positivismo decaiu no interesse daqueles que se ocupam da
discussão de ideias.
Com Kardec está acontecendo o contrário: estão chegando os
Espíritos que reconhecem nas suas ideias a marca da Verdade. Já naquela época,
a despeito da tremenda oposição que encontrou, conseguiu semear largamente a
sua seara. Sabia que a colheita não iria ser imediata, nem espetacular, porque
apenas uma fração da humanidade estaria madura para aceitar a sua pregação, mas
que importa isso para aquele que tem a certeza de estar ao abrigo da Verdade?
Uma pergunta poderá, no entanto, surgir da parte de alguém: Foi
Kardec um pensador, um filósofo no sentido em que conhecemos a palavra? A
resposta é: Positivamente, sim. Sua obra pode ser dividida em duas partes
distintas: uma, a que escreveu, por assim dizer, a quatro mãos com os Espíritos
– “O Livro dos Espíritos”; outra, a que escreveu ainda com evidente assistência
espiritual, mas com seus próprios recursos e ideias que assimilara no trato dos
problemas transcendentais que haviam sido colocados no primeiro.
A muito leitor desavisado poderá parecer de pequena monta o
trabalho individual, pessoal, de Kardec na elaboração de “O Livro dos
Espíritos”, mas não é isso que se passou. Imagine-se um de nós, o leitor ou eu,
diante da tarefa. Sabemos apenas que nos incumbe escrever, com a colaboração
dos Espíritos, uma obra de extraordinária importância.
É, porém, extremamente cautelosa a colaboração dos Espíritos. A
princípio nem mesmo dizem que a tarefa consiste em escrever um livro para
instrução do mundo nas coisas espirituais. Não dizem que feição deve ter o
trabalho, a que roteiro deverá obedecer. Guiado apenas pelo seu bom senso e
pela sua sadia e viva curiosidade, Kardec vai fazendo as perguntas sobre aquilo
que lhe interessa conhecer. A princípio – confessaria mais tarde – desejava
apenas instruir-se na exploração daquele mundo maravilhoso de conhecimentos que
se abria diante dele. O assunto o fascinava, porque lhe trazia respostas a
perguntas que até então haviam ficado sem solução no seu espírito. Daí por
diante, tudo se aclarava: Deus existia realmente, como existia o Espírito. Este
sobrevivia, preexistia e se reencarnava. Os “mortos” se comunicavam com os
“vivos” e o universo todo era regido por leis morais flexíveis mas iniludíveis.
Cada um tinha a responsabilidade pelos seus atos, recompensas pelas suas
vitórias, responsabilidades pelas suas falhas. Os seres, como os mundos, eram
organizados em escala hierárquica de valores, onde predominavam as leis simples
da moral. A teologia ortodoxa estava toda ela precisando de uma total
reformulação nos seus conceitos mais queridos, mais essenciais. Não havia
inferno, nem glórias eternas, ao cabo de uma única existência terrena.
Tudo isso surgia das suas conversas intermináveis com os
Espíritos. Só o decorrer do tempo e a acumulação das respostas é que lhe vieram
mostrar que perguntas e respostas tinham uma estrutura que lhes era própria e
adquiriam a feição de um livro que ele resolveu dar à publicidade, pois que se
ele aprendera ali tanta coisa útil, embora totalmente revolucionária, era
necessário transmitir tais conhecimentos aos seus semelhantes.
E assim surgiu, em 1857, “O Livro dos Espíritos”, obra básica,
vital ao entendimento de toda a filosofia espírita. Pela primeira vez
rasgavam-se os véus que ocultavam a Verdade. Pela primeira vez se escrevia uma
obra reveladora de tão profundos conhecimentos, em linguagem singela, ao
alcance de qualquer pessoa. Bastava saber ler ou saber ouvir o que alguém
lesse.
Mas não parava ali a tarefa do grande missionário. Era preciso
prosseguir, extraindo da nova doutrina as consequências que ela acarretaria
sobre os demais ramos do conhecimento humano. Podemos imaginar Kardec a fazer a
si mesmo algumas perguntas. Como ficaria a doutrina evangélica de Jesus, diante
daquelas ideias? E a Ciência? E a religião dita cristã? Como funcionava essa
estranha faculdade a que deu o nome de mediunidade? Dessas perguntas, surgiram
os demais livros da sua obra.
E assim, de 1854, quando, aos 50 anos de idade, Kardec se
interessou pelo fenômeno das mesas girantes, até 1869, quando regressou ao
plano espiritual, decorreram os 15 anos libertadores que a humanidade ainda não
aprendeu a reconhecer pelo que realmente valem e pelas influências cada vez
maiores que vão exercer no futuro.
Fonte: Reformador, ano 87, n. 3, p. 19(63)-21(65), mar. 1969.