Adilton
Pugliese
"Dela recolhemos todos os episódios
que, talvez, um dia terão o seu interesse, porquanto já pertencerão à
História"
1 – Allan Kardec
O
ensejo do sesquicentenário desse depoimento, podemos afirmar que a previsão do
emérito Codificador do Espiritismo vem se confirmando. O detalhado relatório no
qual ele deixou registrados os fatos de sua incursão ao interior da França tem
atraído o interesse de vários estudiosos da Doutrina Espírita e, sobretudo,
inspirado a formulação das diretrizes das atividades unificacionistas que
envolvem as atividades das instituições espíritas da atualidade.
A
famosa viagem foi, acima de tudo, o atendimento a um convite do Movimento
Espírita que já se dinamizava na nação de Victor Hugo, especificamente nas
cidades de Lyon e Bordeaux, subscrito por 500 assinaturas. Apresso-me em vos
dizer o quanto sou sensível ao novo testemunho de simpatia que acabais de
dar-me,2 declara Allan Kardec na carta-resposta, publicada na Revue Spirite, de
setembro de 1862, solicitando que não haja banquete,2 explicando, humildemente,
os motivos:
[...]
Não vou a Lyon para me exibir, nem para receber homenagem, mas para conversar
convosco, consolar os aflitos, encorajar os fracos, ajudar-vos com os meus
conselhos naquilo que estiver em meu poder fazê-lo.[...]2
No
término da carta despede-se, gentil:Até breve, meus amigos; se Deus quiser
terei o prazer de vos apertar as mãos cordialmente.2
Dentre
outros acontecimentos, 1862 também fora o ano em que Allan Kardec recebeu da
Sociedade Espírita Caridade, de Viena, Áustria, em sessão de aniversário de 18
de maio, o diploma e o título de Presidente Honorário, concedido, por
aclamação, ao digno e corajoso presidente da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas[SPEE].1
A
viagem duraria sete semanas, nos meses de setembro e outubro de 1862. Allan
Kardec visitaria 20 cidades, saindo de Paris: Provins, Troyes, Sens, Lyon,
Avignon, Montpellier, Cette, Toulouse, Marmande, Albi, Sainte-Gemme, Bordeaux,
Royan, Meschers-sur-Garonne, Marennes, St.-Jean dAngély, Angoulême, Tours e
Orléans,3 deslocando-se através da malha ferroviária francesa por 693 léguas
(4.600 km aprox.), assistindo a mais de 50 reuniões.
Era
a terceira viagem que ele realizava para disseminar o conhecimento espírita e
estabelecer diretrizes administrativas e organizacionais para o Movimento
doutrinário nascente.
Em
comunicação recebida,por via mediúnica, em 1º de agosto de 1862, na Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, o Espírito Santo Agostinho, pelo médium Sr. E.
Vézy, comenta acerca das próximas férias da Instituição, estimulando, contudo,
os presentes à reunião, dentre eles Kardec, que o recesso fosse operativo,
dizendo a todos:
|
Capa do livro publicado pela
FEB Editora e frontispício da
primeira edição
|
Aproveitai
estas férias que vão espalhar-vos, para vos tornardes ainda mais fervorosos, a
exemplo dos apóstolos do Cristo [...].4 (Grifo nosso.) Allan Kardec seguiria o
conselho à risca, aproveitando, sobretudo,o convite recebido dos espíritas
lioneses e bordeleses, e planeja, estrategicamente, a utilização daquele
período – que poderia ser dedicado ao lazer, ao repouso e à ociosidade – à
famosa viagem histórica.
Redige,
então,imediatamente, uma Nota a todos os centros espíritas que deveria visitar,
publica-a na Revista Espírita,3 declarando que buscaria aproveitar o melhor
tempo possível para instrução das instituições, e responde a perguntas sobre as
quais desejassem esclarecimentos. Sem embargo, nessa iniciativa do Codificador
estão os pilotis do valioso trabalho realizado pela FEB por meio das reuniões
anuais do Conselho Federativo Nacional (CFN), do Conselho Espírita
Internacional (CEI) e das Comissões Regionais. Podemos incluir, nesse esforço
doutrinário-orientador, o incansável labor realizado pelo médium Divaldo
Franco, no Brasil e no Exterior.
Em
1862, portanto, Kardec retornaria a Lyon e a outras mais 19 cidades. Era
outono, férias de verão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a SPEE. O
Espiritismo completava o seu 5º aniversário, desde a data magna de 18 de abril
de 1857,com o lançamento da pedra fundamental do edifício doutrinário: O Livro
dos Espíritos e também de O Livro dos Médiuns, em 15 de janeiro de 1861.
Allan Kardec planeja cuidadosamente o périplo,
tendo em vista que o esperavam vários encontros com dirigentes e adeptos da
novel Doutrina. Nas suas Impressões Gerais, constantes do opúsculo Voyage
Spirite en 1862, ele declara que já constatara, na primeira ida a Lyon, em
1860, a existência de no máximo algumas centenas de adeptos;5 em 1861, ao
retornar, identificara de cinco a seis mil,5 e naquela nova viagem podia
avaliá-los entre vinte e cinco e trinta mil.5
Lançando as primeiras sementes dos futuros
encontros de Unificação, que há mais de um século são promovidos pela Federação
Espírita Brasileira e pelas Federativas Estaduais, Allan Kardec realizou
Reuniões Gerais com a participação dos
espíritas de Lyon e de Bordeaux, pronunciando discursos de avaliação e
instruções particulares em resposta a algumas perguntas que lhe foram dirigidas.5
Após a viagem, emitiria nota na Revue Spirite,
de novembro de 1862 (ano V, n. 11), declarando ser longo o relato de tudo o que
acontecera e que publicaria um livreto à parte6 (Voyage Spirite en 1862), que
já se encontrava no prelo, em formato de brochura, contendo, em síntese:
1.As observações sobre o estado do
Espiritismo;7
2.As instruções dadas por Allan Kardec nos
diferentes grupos;7
3. As instruções sobre a formação dos grupos e
das sociedades, e um modelo de regulamento para o uso deles e delas.7
Relendo, um século e meio depois, os
históricos textos da lavra do mestre do Espiritismo, facilmente deduzimos
porque ele foi escolhido por Jesus para liderar a nobre missão de concretizar a
sua promessa da vinda do Consolador.
Do relato apresentado, após o seu retorno,
extraímos destaques importantes nos três discursos pronunciados por Allan
Kardec:
I. A caracterização dos verdadeiros espíritas,
os espíritas cristãos: Os que aceitam para si mesmos todas as consequências da
Doutrina, e que praticam ou se esforçam por praticar a sua moral;8
II. Ele [o Espiritismo] agrada: 1) Porque
satisfaz à aspiração instintiva do homem quanto ao futuro; 2) Porque apresenta
o futuro sob um aspecto que a razão pode admitir; 3) Porque a certeza da vida
futura faz com que o homem sofra sem se
queixar das misérias da vida presente; [...] 6) Porque todas as máximas dadas
pelos Espíritos tendem a tornar melhores os homens uns para com os outros.8
III.
Se o Espiritismo é uma verdade, se deve regenerar o mundo, é porque tem por
base a caridade. Ele não vem derrubar os cultos nem estabelecer um novo;
proclama e prova verdades comuns a todos, base de todas as religiões, sem se
preocupar com detalhes. Não vem destruir senão uma coisa: o materialismo, que é
a negação de toda religião [...].8
No capítulo Instruções Particulares dadas aos
Grupos...Allan Kardec transcreve oito respostas dadas por ele a questões
propostas pelos participantes dos encontros. No
terceiro parágrafo, o Codificador destaca ser o Espiritismo invulnerável
sob a égide de sua sublime moral,9 enfatizando: Em caso de incerteza tendes um
farol que não vos pode enganar: a caridade, que nunca é equívoca.9 (Grifo do
original.)
Não seria desejável que os espíritas tivessem
uma senha, um sinal qualquer para se reconhecerem quando se encontram?,9
questionaram membros dos grupos reunidos. Allan Kardec, consciente do papel dos
adeptos da Terceira Revelação, por ele mesmo designados espíritas ou
espiritistas, consoante consignou na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita
em O Livro dos Espíritos, item I, responde:
Os
espíritas não formam nem uma sociedade secreta, nem uma afiliação; não devem,
pois, ter nenhum sinal secreto para serem reconhecidos. [...] Tendes uma senha
que é compreendida de um extremo a outro do mundo: é a da caridade. [...] Pela
prática da verdadeira caridade reconhecereis sempre um irmão, ainda que não
seja espírita, e deveis estender-lhe a mão [...].9
No Projeto de Regulamento para uso dos Grupos
e Pequenas Sociedades Espíritas,10 confirma os seus sentimentos cristãos e a
sua comovedora vinculação com o Cristo, ao propor, como divisa das instituições
espíritas que se alastrariam pelo mundo, o lema da religião espírita: Fora da
Caridade não há Salvação;10 ampliando-o para: Fora da Caridade não há
Verdadeiros Espíritas!10
As
experiências das viagens de propaganda espírita seriam consideradas por Allan
Kardec ponto estratégico para a divulgação da Doutrina e organização dos
centros espíritas pioneiros e do futuro. Tanto, que insere essa iniciativa como
o 4º eixo [os outros seriam criação de um (1º) Estabelecimento Central; (2º)
Ensino Espírita e (3º) Publicidade em larga escala das ideias espíritas] do seu
famoso e sempre atual Projeto 1868, definindo o seu objetivo: Dois ou três
meses do ano seriam consagrados a viagens, para visitar os diferentes centros e
lhes imprimir boa direção.11
Sob vários pontos de vista, nossa viagem foi
muito satisfatória e, sobretudo, muito instrutiva pelas observações que
recolhemos, conclui Allan Kardec em suas Impressões Gerais. Declara-se feliz
por ter apertado as mãos dos irmãos espíritas e de lhes ter expressado
pessoalmente a sua sincera e viva simpatia, retribuindo as tocantes provas de
amizade que eles transmitiam em suas cartas, e expressa, em seu nome e em nome
da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, um testemunho especial de
gratidão e de admiração àqueles destemidos pioneiros das primeiras alvoradas do
Espiritismo na Terra.12
Referências:
1MOREIL, André. Vida e obra de Allan Kardec.
São Paulo: Edicel, 1986. p. 67.
2KARDEC, Allan. Aos centros espíritas que
devemos visitar. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 5,
n. 9, p. 379 e 381, respectivamente,set.
1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra.3. ed. 2. reimp. Rio de Janeiro: FEB Editora,
2009.
3______. Viagem espírita em 1862 e outras
viagens de Kardec. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 2. reimp. Rio de
Janeiro: FEB Editora, 2011. Cap. Impressões gerais, p. 26.
4______. Férias da Sociedade Espírita de
Paris. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 5, n. 9, p. 392,
set. 1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2.ed. 2. reimp. Rio de Janeiro: FEB
Editora,2009.
5______. Viagem espírita em 1862 e outras
viagens de Kardec. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 2. reimp. Rio de Janeiro:
FEB Editora, 2011. p. 27 e 48, respectivamente.
6______. Viagem espírita em 1862. Revista
espírita: jornal de estudos psicológicos,ano 5, n. 11, p. 438, nov. 1862.
Trad.Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp.Rio de Janeiro: FEB Editora, 2009.
7CHIBENI,
Silvio S. Sinopse dos principais fatos referentes às origens do Espiritismo –
II. Reformador, ano 117, n. 2.040, p. 33(93), mar. 1999. 8KARDEC, Allan. Viagem
espírita em 1862 e outras viagens de Kardec. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 2. reimp. Rio
de Janeiro: FEB Editora, 2011. p. 53, 77, 78 e 87, respectivamente.
9______. ______. p. 106, 110 e 111,
respectivamente.
10______. ______. p. 142.
11______. Obras póstumas. Trad. Evandro
Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB Editora, 2009. Cap. Projeto – 1868,
it.Viagens, p. 441.
12______. Viagem espírita em 1862 e outras
viagens de Kardec. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 2. reimp. Rio de
Janeiro: FEB Editora, 2011. Nota do Tradutor, p. 11.
Revista Reformador / Novembro, 2012 / No 2.204
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