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quarta-feira, 6 de maio de 2015

A USINA HUMANA - Estudos de Henri Durville – parte II


Ana Vargas
anavargas.adv@uol.com.br

Costumo dizer que a sala de atendimento magnético, ou a sala de passes, é um solo sagrado. Ali tudo, tudo mesmo, pode acontecer. Os mais incomuns fenômenos podem parar sob nossos olhos, e tanto poderão ser físicos (doenças raras, por exemplo), psicológicos ou espirituais, ou ainda a mescla dos anteriores. Por isso, um conhecimento mínimo das estruturas que compõem o ser humano é imprescindível para que o magnetizador saiba reconhecer com o que está lidando, além dos fenômenos magnéticos que devem ser intimamente conhecidos. A abordagem a respeito do inconsciente e suas manifestações é um alerta oportuno, uma boa e fácil leitura para quem nunca leu a respeito, e um incentivo aos que já o estudam para que se aprofundem mais, acrescentando as contribuições feitas pelo avanço das ciências da mente desde a época desses autores clássicos. Muitos outros fenômenos do inconsciente param em nossas mãos, tenho certeza. 


“O que se entende por  inconsciente, não tem sido compreen-dido em toda sua exatidão. Os filósofos franceses do século XVII, e em particular Descartes, entenderam suprimir esta parte de nós mesmos.

Ou nós sentimos clara e nitidamente uma coisa, diziam eles, ou não a sentimos em absoluto. E concluíam assim: a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo.

Isto era cometer um perigoso erro por omissão. É fácil provar que sois o teatro de uma porção de fatos semiconscientes, os quais, uma vez passados, deles só guardareis algumas impres-sões. Todas as gradações existem, apesar disso, na consciência, desde a visão deslumbrante de um raciocínio por um espírito seguro de si, até as meias  tintas mais atenuadas e mais fugazes que apresentam os fenômenos obscuros da sensibilidade inter-na, as dores vagas chamadas de doenças do coração, os prazeres obscuros da digestão e muitos outros mais.

Certos exemplos que provam a existência do inconsciente são clássicos. O moleiro dorme ao tic-tac de seu moinho. Acorda quando esse tic-tac cessa e a roda  pára. Há nele, pois, como que um despertador vigilante que acompanha, fora da consciência, durante o sono, este ruído particular. A supressão desse ruído, importante apenas para o moleiro, só afetou a consciência.

Estais em vosso aposento e trabalhais. De repente, durante um momento de descanso, os vossos olhos se fixam, sem que deis por isso, sobre os desenhos do papel que forra as paredes: são ramalhetes de rosas atadas por fitas azuis. Os ramalhetes estão unidos uns aos outros por guirlandas de rosas menores. Analisais todos os detalhes do desenho, observais todos os matizes das flores. Parece-vos que nunca tínheis visto o que agora olhais assim. Entretanto, há longos anos habitais aquele aposento. Quantas e quantas vezes vossos olhos pousaram sobre aquelas rosas! Há quanto tempo as conheceis, vendo-as sem cessar... Elas estão contidas em todas as impressões que recebeis a cada segundo, a cada milésimo de segundo, do mundo exterior a vós. Porque não as víeis? É que desviáveis a sensação recebida, porque ela era inútil. Não existe então? Sim, mas dizeis que dela não tínheis consciência. A impressão consciente pode produzir-se, ela está sempre à vossa disposição, porém foi posta em reserva, como uma cozinheira econômica faz com seus confeitos.

O mesmo sucede com todos os fatos de vossa vida mental; todos os vossos sentidos vos dão, a cada instante, milhões de informações, entre as quais escolheis algumas, muitas vezes uma só, para sobre ela fixar toda atenção. Por outra parte, guardais milhares de recordações, e dentre elas podeis escolher, quando vos apraz, como podeis ir procurar em um álbum uma fotografia entre mil outras. Todas essas recordações estão em reserva em vosso inconsciente.

Uma pessoa que nunca vistes, vos  aparece um dia. Sentis por ela uma  certa atração; ela vos agrada. Experimentastes o desejo de lhe falar, de vos aproximar dela. Por quê? É que vosso inconsciente faz das suas. Tal traço desta pessoa, tal atitude, tal inflexão de voz, vos despertaram, sem que o percebêsseis, uma porção de recordações que se relacionam com pessoas amadas por vós anteriormente. É o olhar de uma irmã, a voz de uma mãe, a atitude de uma mulher que admirastes numa reunião, num teatro, em uma fotografia ou numa gravura.

Todos os sentimentos que experimentastes pelas pessoas que, de perto ou de longe, se pareciam com aquela que vos desperta uma viva e repentina simpatia, se associam à vista, ao pensamento desta pessoa. E esta síntese brusca se opera sem o perceberdes; ser-vos-ia tão difícil descobrir-lhes os elementos como é, de ordinário, remontar às causas de nossos sonhos. A maior parte de nossas sensações, de nossas emoções, de nossos sentimentos tem, no que se chama o inconsciente, suas causas profundas.

O mesmo se dá com os nossos atos involuntários. Eles são preparados por movimentos automáticos, cuja existência foi revelada por experimentalistas.

O Dr. Binet dá um livro a uma pessoa acordada e ordena-lhe que leia em voz alta. Durante esse tempo, ele isola, com um cartão assaz grande, a mão que não segura o livro. A esta mão, que tem um lápis, ele imprime um movimento determinado, de tal modo que ela traça círculos ou retas sobre um papel. Ele continua, durante alguns instantes, o movimento, enquanto que toda atenção do paciente está concentrada na leitura. Depois de certo tempo, ele abandona a mão a si mesma: esta continua automaticamente o movimento que lhe foi imposto e que ela prolonga ainda, durante muito tempo, fora da direção de seu proprietário, absorvido por outros cuidados.

Pode-se ir mais longe e penetrar no pensamento alheio, graças aos indícios que nos fornecem seus movimentos inconscientes. O Dr. d’Allones imaginou um dispositivo que permite adivinhar automaticamente um pensamento não expresso, com a condição de que ele não seja muito com-plicado.

Trata-se de um cilindro rotativo, onde estão inscritas ordenadas ou linhas verticais a intervalos sempre iguais. Cada ordenada é marcada por um algarismo ou uma letra inscrita sobre ela.
O paciente de quem se quer adivinhar o pensamento fica  sentado, de costas voltadas para o cilindro, segurando uma pera de borracha como as que são usadas pelos fotógrafos. A pera é adaptada a um tubo delgado que comunica com um tambor inscritor de Marey. A menor contração do paciente que aperta a pera verifica-se, sem que ele o perceba, um sinal sobre o tambor.

Dizei ao paciente que pense um algarismo ou uma letra, nomeie todas as letras ou todos os algarismos, à medida que forem passando diante da ponta. Quando tiverdes enunciado o algarismo ou a letra que o paciente pensou, sem que ele o perceba, a sua mão se contrairá e esta contração se inscreverá quase sem erro possível.

Se desejardes obter uma frase inteira, procure adivinhar sucessivamente as letras de cada palavra. Que vosso paciente pense, antes de tudo, na primeira letra da primeira palavra. Soletrai, em voz alta, todo o alfabeto e o paciente contrairá a mão, involuntariamente, à passagem da letra que ele tiver pensado

Chegareis, assim, facilmente, a formar a frase inteira. Estas experiências são bem sucedidas não só com os grandes nervosos, mas também com a grande maioria das pessoas.

Pelo mesmo processo, pode se  adivinhar os números e as operações aritméticas. Pedi ao vosso paciente para operar mentalmente uma subtração de dois números compreendidos entre 7 e 41. Se ele reage em 16, em 24 e em 40, é, evidentemente, porque terá pensado que 40 menos 24, igual a 16.

Pedi, depois, ao paciente que pense em uma multiplicação, cujos algarismos não ultrapassem 10. Se ele reage em 2, em 4 e em 8, concluireis que ele pensou: 2 multiplicado por 4, igual a 8.

Podereis ainda adivinhar o que a vontade daquele que serve para a experiência quereria ocultar-vos, uma vez que se trata de um grande nervoso. O Dr. d’Allones foi levado a tentar esta experiência porque havia observado que quando um paciente tem consciência de suas reações involuntárias e procura suprimi-las, acontece-lhe reagir mais fortemente ainda do que de costume.

Uma rapariga de vinte anos, criminosa, não alienada, tinha envenenado sua rival. Simulando histeria, ela conseguira obter da justiça uma declaração de que não havia motivo para prosseguir-se a causa, subterfúgio que o seu advogado, dizia ela, não havia desaprovado. O Dr. d’Allonnes, por meio de seu dispositivo, obteve confissões escritas

Reproduzimos uma figura que mostra esta curiosa experiência. O traçado contém a confissão: gai voler por j’ ai volé (eu roubei). O francês está estropiado porque a paciente é semianalfabeta.

Estas contrações involuntárias dos músculos foram utilizadas por todos os pseudoledores de pensamento. Um deles, Bellini, fazia ocultar um objeto em uma sala e afirmava descobri-lo, penetrando o pensamento de um espectador que percorria a sala com ele, dando-lhe a mão. Na reali-dade, ele sentia, quando passava diante da fila de cadeiras onde o objeto estava oculto, uma ligeira resistência de seu guia involuntário. Ele estacava e não ia mais longe. Para empregar a expressão das crianças em um brinquedo semelhante, “tinha farejado”. Então, penetrando pela fila de cadeiras, continuava sua pesquisa, animado pelos murmúrios de admiração dos vizinhos e pelos fracos movimentos da mão que ele segurava.

Da mesma forma, Pickmann, o leitor de pensamentos bem conhecido, dizia a um espectador, que não era absolutamente um comparsa:

‘O Sr. vai pensar um número; eu o lerei em seu cérebro e escreverei depois em um quadro negro. Não haverá, assim, nem truque, nem compadrismo  possível.’

Pickmann dizia uma parte da verdade: ele não tinha nenhum guia. Entretanto, sem o perceber, o espectador, por seus movimentos inconscientes, servia de comparsa.

Para fazer a experiência, Pickmann colocava alguém diante de um quadro negro e fazia-o segurar na mão direita um pedaço de giz. Segurava, depois, esta mão e, à medida que ia pronunciando rapidamente e em voz bem alta os algarismos 0, 1, 2, etc., agarrava a mão direita do espectador, fazendo o simulacro de escrever cada um dos algarismos, ao mesmo tempo, que os enunciava. Quando o algarismo pensado era pronunciado, o espectador tinha um ligeiro movimento que o levava, sem que ele se apercebesse, a escrever, ele mesmo, o algarismo.

Esta influência do inconsciente se revela plenamente na escrita. É desta observação que nasceu a grafologia. Se a nossa saúde se altera, nós vemos os finais das palavras, as terminações das linhas abaixarem-se da maneira mais desalentada. Ao contrário, linhas ascendentes revelam uma saúde florescente, uma excelente moral e perspectivas ambiciosas, confessadas ou não.

Da mesma forma, aquele que a vida tornou concentrado, fechará seus o e seus a, afivelando-os mesmo, se ele se tornou de todo desconfiado. Aquele que é voluntário, corta fortemente seus t. O fato de pontuar corretamente revela hábitos de ordem. Mil outros indícios podem nos revelar o estado de saúde ou de espírito daqueles com quem tratamos.

É ao inconsciente ainda que se deve atribuir o medo do fiasco e os sonhos. O medo do fiasco, isto é, a timidez, é o temor exagerado do público. A força de se dizer que ele vai falar mal, mal cantar ou mal representar, o infeliz medroso põe-se em um tal estado que se realiza suas mais sinistras predições. Sua memória se paralisa, suas ideias não têm mais nenhuma coerência, as palavras que ele deve proferir fogem-lhe. E quando ele dá fé desses desfalecimentos, seus temores duplicam. Seu corpo amolece, suas pernas se recusam a sustentá-lo, sente um aperto na laringe e no estômago e, não raro, torna-se presa da afonia e de penosas vertigens.

O medo do fiasco exerce uma influência nefasta sobre os rins e os intestinos, que ele impede de funcionar. Suores abundantes e gelados cobrem o corpo do infeliz que experimenta tão rude provação. Vamos procurar demonstrar que nossos sonhos são o produto de nosso inconsciente, que, neste caso, age sozinho. Alfred Maury1 provou que a causa de certos sonhos reside em fatos psicológicos que precedem ou acompanham o sono ou nas associações inconscientes. M. Foucault insistiu sobre este último ponto2.

Um exemplo deste gênero de sonho, dado por Maury, é característico. O distinto psicólogo tinha-se dedicado a registrar suas impressões. Uma noite, ele se vê bruscamente diante de um tribunal revolucionário. Reconheceu o terrível Fouquier-Tinville e, dentro em pouco, viu-se condenar à morte. Passa para a prisão, ouve chamarem-no pelo nome, sobe para a carreta fúnebre; chega ao cadafalso, é impelido sobre a báscula e sente nitidamente sobre a nuca o pavoroso choque da lâ-mina. Desperta bruscamente e verifica que o dossel do leito acabara de cair-lhe sobre a nuca e de provocar seu retorno à plena consciência.
Assim é que, as múltiplas imagens que haviam desfilado em seu espírito tinham sucedido à queda do dossel. Vê-se com que rapidez assombrosa elas se produziram, pois que não havia certamente decorrido mais de um segundo entre o choque do pedaço de madeira do dossel e o despertar. Vê-se também que a inteligência do observador havia inconscientemente procurado uma explicação do fenômeno físico e psicológico, e que uma influência secreta tinha levado Maury a dizer para si mesmo:

‘Eu devo estar na época do Terror, pois que recebo sobre minha cabeça a lâmina da guilhotina.’

Começai a imaginar que lugar considerável ocupa o inconsciente em vossa vida mental. Pode-se dizer que os fatos conscientes são, em proporção aos fatos inconscientes, muito pouco numerosos. Nós o admitimos sem dificuldade, se considerarmos que são eles que presi-dem a tudo o que é em nós automático, invariável, sempre idêntico a si mesmo. Os fatos inconscientes se organizam e é de sua própria ordem que nasce a consciência. Ela é como a chama que se produz de uma vez no fogão, mas que não poderia iluminar, se o fole não tivesse atuado sobre as brasas.

A consciência não é, como julgou Maudsley, um luxo sem importância; ela é o resultado necessário de todo este encadeamento que passamos em revista convosco. Da mesma forma que nossa usina fisiológica tem por fim fabricar a força nervosa que, segundo a forte expressão de Th. Ribot,  se acumula em nosso inconsciente, assim também esta força, quando seu potencial é suficiente, se manifesta sob a forma consciente que nos resta estudar.”

Seguiremos, no nosso próximo encontro, aqui no Vórtice, compartilhando o estudo de Henri Durville sobre a consciência, encerrando o conhecimento básico do organismo material, da nossa usina humana, conforme esse autor denomina.

Referências;


1 Maury, Alfred – O sono e os sonhos.
2 Foucault, Marcel – O sonho; Paris, 1906.


JORNAL VÓRTICE ANO VII, n.º 09 - fevereiro - 2015


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