Resumo:
Este trabalho indica as
linhas gerais da visão kuhniana de ciência, em contraste com as concepções
anteriores. Depois, argumenta que a Doutrina Espírita constitui um paradigma
científico, no sentido apontado por Kuhn, sendo, portanto, genuinamente
científica. O criador do paradigma foi Allan Kardec. Diante da tradição de
ciência normal estabelecida pelo paradigma kardequiano, que prossegue com
grande sucesso até nossos dias, transparece a inadequação das tentativas de se
iniciarem outros paradigmas (metapsíquica, parapsicologia, etc.).
1. Introdução
Muito se tem discutido nos
meios espíritas a questão da cientificidade do Espiritismo. Embora Allan Kardec
a tenha abordado de forma precisa e completa, alegam alguns que
desenvolvimentos recentes na ciência e em linhas não-espíritas de pesquisa dos
fenômenos a que chamam "paranormais" trouxeram novidades ao palco dos
debates. Neste trabalho procuraremos investigar o aspecto científico do
Espiritismo e a alegação acima, recorrendo à filosofia da ciência
contemporânea, e, mais especificamente, aos estudos do filósofo americano
Thomas Kuhn.
A filosofia da ciência é o
ramo da filosofia que se ocupa da análise do conhecimento científico: seus
fundamentos, sua abrangência, sua especificidade, sua evolução. De maior
relevância para os nossos presentes propósitos é a questão do chamado critério
de demarcação entre ciência e não-ciência, ou pseudo-ciência. Essa questão
interessou de perto a todos os filósofos que se dedicaram ao estudo da ciência,
havendo se destacado com o surgimento da ciência moderna, nos séculos 16 e 17.
Nessa época, as investigações científicas, especificamente no domínio daquilo
que hoje chamamos física, conduziram a um notável incremento no poder preditivo
e explicativo da ciência, com as contribuições de Galileo, Huygens, Descartes e
Newton, entre outros.
Difundiu-se então a idéia,
antecipada por Francis Bacon, de que o sucesso da ciência se devia à adoção de
um método especial, o chamado método científico. A aplicação desse método é que
demarcaria a ciência genuína das atividades não-científicas. A explicitação,
compreensão e elaboração do método científico passou a constituir tópico de
pesquisa dos filósofos (que, em muitos casos, eram os próprios cientistas a
divisão mais ou menos nítida entre a ciência e a filosofia é recente).
Em uma descrição aproximada,
pode-se afirmar que a questão do método científico recebeu uma resposta mais ou
menos uniforme desde o século 16 até meados de nosso século, quando então
começou a ser posta em dúvida. Embora fosse muito útil, não dispomos de espaço
aqui para apresentar as idéias centrais da concepção clássica de ciência e das
críticas que recentemente levaram à sua substituição.{nota 1} Diremos apenas
que essa concepção clássica é ainda a que predomina entre o público leigo, e,
em boa parte, entre os cientistas, havendo, pois, um descompasso entre eles e
os filósofos e historiadores da ciência contemporâneos.
Em seus traços mais gerais,
a visão clássica da ciência assume que uma disciplina científica é aquela que
parte de um processo longo de coleta de dados, ou seja, de observação dos
fenômenos. Desses dados resultariam então as leis gerais que regem os
fenômenos. Reunidas, essas leis formariam as teorias científicas. O progresso
da ciência se daria pelo acréscimo de novas observações, das quais resultariam
leis adicionais, que iriam se incorporando às teorias.
No processo assim
esquematizado são essenciais as seguintes assunções: 1) Na etapa de coleta de
dados não intervém nenhuma diretriz teórica: as observações são neutras; 2)
Igualmente, as leis resultam dos fenômenos por um método neutro, objetivo e
infalível; e, 3) As novas leis descobertas ao longo da evolução da ciência são
sempre complementares, nunca incompatíveis, com as leis já estabelecidas.
A articulação suprema dessa
concepção tradicional de ciência se deu no bojo do programa filosófico do
positivismo lógico, que floresceu nas décadas de 1920 a 1940. Esse programa
alcançou níveis admiráveis de sofisticação formal e teórica, vindo a exercer
uma profunda e duradoura influência sobre a classe científica. Já em 1934,
porém, o filósofo austríaco, mais tarde naturalizado britânico, Karl Popper
publicou um livro intitulado A Lógica da Descoberta Científica (Popper 1968),
contendo críticas incisivas à concepção clássica, lógico-positivista de
ciência. Tais objeções passaram em grande parte desapercebidas até o final da
década de 1950, quando apareceu uma versão inglesa do livro, e o programa do
positivismo lógico já havia experimentado por mais de duas décadas um processo
vigoroso de auto-crítica.
Mais uma vez, limitações de
espaço não nos permitem expor aqui as críticas de Popper, ou sua concepção de
ciência, conhecida hoje por falseacionismo. Observamos apenas que, a seu turno,
o falseacionismo topou com restrições mais ou menos severas, levantadas por
outros filósofos da ciência. Dentre eles, os mais importantes são Thomas Kuhn,
Imre Lakatos e Paul Feyerabend.{nota 2} Em trabalhos anteriores (Chibeni 1984,
1988 e 1991), tivemos a ocasião de tratar da filosofia da ciência de Lakatos,
em conexão com a questão da ciência espírita. Agora, tentaremos abordar essa
mesma questão à luz das idéias kuhnianas da ciência. Salientamos, desde já, que
para que fosse levado a cabo de maneira satisfatória, esse empreendimento
exigiria uma exposição detalhada da filosofia de Kuhn, o que evidentemente não
pode caber nas dimensões de um artigo. Pretendemos, pois, que o que se vai
seguir seja tomado apenas como uma motivação para estudos ulteriores.
2. Esboço da filosofia da
ciência de Kuhn
Kuhn começou sua carreira
acadêmica como físico teórico, interessando-se depois por história da ciência.
Ao longo das importantes investigações que empreendeu acerca das teorias
científicas passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva historiográfica,
que procura compreender uma teoria a partir do contexto de sua época, e não do
ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de que a concepção de
ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se
desenvolve ao longo do tempo. Essa percepção da inadequação histórica das
idéias usuais sobre a natureza da ciência o conduziu, finalmente, à filosofia
da ciência. Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em
seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria
a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em
uma linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele teses bastante sofisticadas
sobre o conhecimento científico e o conhecimento em geral, que receberam
críticas filosóficas diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este não é o
lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos a expor
simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn e que se tornaram
reconhecidos, com esta ou aquela alteração menor, pela quase totalidade dos
filósofos da ciência. Felizmente, são esses pontos mais consensuais os que
maior relevância têm para os nossos propósitos neste artigo.
A espinha dorsal da
concepção kuhniana de ciência consiste na tese de que o desenvolvimento típico
de uma disciplina científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:
fase pré-paradigmática >
ciência normal > crise > revolução >
nova ciência normal >
nova crise > nova revolução ...
Daremos agora uma explicação
simplificada das noções envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma ciência.
A fase pré-paradigmática
representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência, aquele período no
qual reina uma ampla divergência entre os pesquisadores, ou grupos de
pesquisadores, sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o devem ser,
sobre quais devem ser explicados, e segundo quais princípios teóricos, sobre
como os princípios teóricos se inter-relacionam, sobre as regras, métodos e
valores que devem direcionar a busca, descrição, classificação e explicação de
novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias, sobre quais técnicas e
instrumentos podem ser utilizados, e quais devem ser utilizados, etc. Enquanto
predomina um tal estado de coisas, a disciplina ainda não alcançou o estatuto
de científica, ou seja, não constitui uma ciência genuína.
Uma disciplina se torna uma
ciência quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-paradigmática e
iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o critério de demarcação
proposto por Kuhn para substituir o critério da concepção clássica (esboçado na
seção anterior). O termo 'paradigma' tem uma acepção bastante elástica no texto
original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as sutilezas de seu significado.
Em seu sentido usual, pré-kuhniano, o termo significa 'exemplo', 'modelo'.
Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do
indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em
'ar'.
Kuhn percebeu que a
transição para a maturidade, para a fase científica, de uma disciplina envolve
o reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realização científica
exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de
divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica de
Newton, a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estão entre os
exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas adentrar
a fase científica.
É difícil explicitar,
especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formação de um
paradigma. Kuhn sustenta mesmo que essa explicitação nunca pode ser completa. A
razão disso é que o conhecimento de um paradigma é, em parte, tácito, adquirido
pela exposição direta ao modo de fazer ciência determinado pelo paradigma.
Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica à maneira de Newton que se pode
conhecer completamente o paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo
à maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma
eletromagnético.
No entanto, podemos, a
título de balizamento, considerar como partes integrantes de um paradigma: uma
ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade;
princípios teóricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o
comportamento dessas coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam
sua conexão com os fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos,
regras metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do
paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria; etc.
Um paradigma fornece, pois,
os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas
atividades. Um paradigma representa como que um "mapa" a ser usado
pelos cientistas na exploração da Natureza. As pesquisas firmemente assentadas
nas teorias, métodos e exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de
ciência normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extensão do
conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente
significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria aos fatos pela
articulação ulterior da teoria e pela observação mais precisa dos fenômenos.
Um ponto importante destacado
por Kuhn é que enquanto o "mapa" paradigmático estiver se mostrando
frutífero, e não surgirem embaraços sérios no ajuste empírico da teoria, o
cientista deve persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora
a ciência normal seja uma atividade altamente direcionada, e em um certo
sentido seletiva, essa restrição é essencial ao desenvolvimento da ciência. É
somente centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos e princípios
teóricos explicativos que o cientista conseguirá ir fundo no estudo da
Natureza. Nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com
sucesso na ausência de um corpo de princípios teóricos e metodológicos que
permitam seleção, avaliação e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos
principais enganos da concepção clássica de ciência, que imaginava ser possível
fazer observações neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que
fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em
"simbiose", os primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo
para a sua seleção, classificação, concatenação, predição e explicação. De
posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas, o cientista
não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, começando
de princípios básicos e justificando o significado e uso de cada conceito
introduzido, assim como a relevância de cada fenômeno observado.
Kuhn entende a ciência
normal como uma atividade de resolução de "quebra-cabeças" (puzzles),
já que, como eles, ela se desenvolve segundo regras relativamente bem
definidas. Só que na ciência os quebra-cabeças nos são apresentados pela
Natureza. Ao longo da exploração de um paradigma pode ocorrer que alguns desses
quebra-cabeças se mostrem de difícil solução. O dever do cientista é insistir
no emprego das regras e princípios paradigmáticos fundamentais o quanto possa.
Utilizando a analogia, não vale, por exemplo, cortar um canto de uma peça do
quebra-cabeça para que se encaixe em uma determinada posição. Mas no caso da
ciência esse apego ao paradigma, que é essencial, como indicamos acima, não
pode ser levado ao extremo. Quando quebra-cabeças sem solução a que Kuhn
denomina anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos melhores
esforços dos melhores cientistas, e incidem sobre áreas vitais da teoria
paradigmática, chegou o tempo de considerar a substituição do próprio
paradigma. Nestas situações de crise, membros mais ousados e criativos da
comunidade científica propõem alternativas de paradigmas. Perdida a confiança
no paradigma vigente, tais alternativas começam a ser levadas a sério por um
número crescente de cientistas. Instala-se um período de discussões e
divergências sobre os fundamentos da ciência que lembra um pouco o que ocorreu
na fase pré-paradigmática. A diferença básica é que mesmo durante a crise o
paradigma até então adotado não é abandonado, enquanto não surgir um outro que
se revele superior a ele em praticamente todos os aspectos.
Quando um novo paradigma vem
a substituir o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução científica.
Grande parte das teses filosóficas sofisticadas desse autor que se tornaram
alvo de polêmicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera acerca
das revoluções científicas. Conforme já alertamos, não adentraremos esse
assunto aqui. O esquema geral da natureza da ciência que apresentamos acima
representa a contribuição mais consensual de Kuhn à filosofia da ciência, e
pode também ser identificado, com adaptações, principalmente terminológicas, na
filosofia da ciência de Lakatos, a segunda das duas mais sistemáticas e
importantes tentativas contemporâneas de compreensão da ciência.
3. O paradigma espírita
Neste ponto o leitor
familiarizado com a história do Espiritismo e que tenha lido, estudado, meditado
e compreendido a obra de Allan Kardec já terá percebido o embasamento de nossas
teses principais: a obra de Kardec constitui um genuíno paradigma científico, e
esse paradigma representa, até hoje, a única diretriz segura ao longo da qual
se podem desenvolver pesquisas científicas acerca dos fenômenos espíritas e do
aspecto espiritual do ser humano em geral.
A explicitação completa
dessas teses exigiria que percorrêssemos toda a história do Espiritismo, toda a
obra kardequiana, e as tentativas de estudo dos fenômenos espíritas fora do
paradigma espírita. Evidentemente, não há espaço aqui para encetarmos tal
empreendimento. Indicaremos apenas alguns pontos mais salientes, para motivar
aqueles que queiram refletir sobre o assunto.
Como repetidamente enfatizou
o próprio Kardec, alguns dos fatos mais significativos que serviram de base
para as suas pesquisas eram conhecidos, embora de modo impreciso e obscuro,
desde os primeiros tempos da civilização humana. No entanto, transparece
claramente que, não obstante tenham sempre sido objeto de estudo por parte de
indivíduos e doutrinas, não havia, até o advento do Espiritismo, um paradigma
científico que os concatenasse e integrasse em um corpo de princípios teóricos
precisos e abrangentes, acompanhados de métodos, critérios e valores que
definissem rumos confiáveis ao longo dos quais a sua investigação pudesse
caminhar. Foi a fase pré-paradigmática das pesquisas do espírito.
Tal fase encerrou-se com o
trabalho de Allan Kardec. Ele nos legou um paradigma admiravelmente coerente,
abrangente, empiricamente adequado e heuristicamente fértil, que não deixa nada
a desejar aos mais bem sucedidos paradigmas das ciências ordinárias, como a
termodinâmica, o eletromagnetismo, as teorias da relatividade, a mecânica
quântica, etc.
Como uma indicação geral e
aproximada, podemos dizer que O Livro dos Espíritos estabeleceu a ontologia e
os princípios teóricos básicos; O Livro dos Médiuns e a segunda parte de O Céu
e o Inferno efetuaram a conexão com a base experimental; O Evangelho segundo o
Espiritismo e a primeira parte de O Céu e o Inferno exploraram as repercussões
filosóficas do paradigma no campo da ética; {nota 3} A Gênese, os Milagres e as
Predições segundo o Espiritismo e ensaios diversos nas Obras Póstumas e Revista
Espírita aprofundaram vários pontos da teoria, sendo que a Revista constitui
também valioso repositório de relatos experimentais.
Imperioso notar que a teoria
espírita se faz acompanhar daqueles elementos vitais de um legítimo paradigma
científico, e que nem sempre são inteiramente explicitáveis: critérios, métodos
e valores que norteiam a busca, descrição e avaliação tanto de fatos como de
princípios teóricos auxiliares. E mais: Kardec nos forneceu em profusão
exemplos concretos de problemas resolvidos pela teoria espírita, verdadeiros
modelos a serem seguidos na abordagem de outros problemas. Vemos, em
consonância com as concepções de Kuhn, que tais aplicações exemplares da teoria
desempenham de fato grande papel na assimilação da real essência do Espiritismo.
Aqueles que não se debruçaram sobre eles, e inspecionaram os princípios
espíritas apenas "de fora", e muitas vezes mesmo de forma
fragmentária, encontram-se incapacitados de bem julgar o paradigma kardequiano;
não adquiriram aquilo que Kuhn (seguindo Michael Polanyi) chama de conhecimento
tácito da ciência espírita.
Examinando a história do
Espiritismo após Kardec, vemos que o paradigma por ele iniciado prosseguiu o
seu desenvolvimento, dentro de uma bem sucedida tradição de ciência normal.
Léon Denis, nos primeiro tempos, e depois Bezerra, Emmanuel, André Luiz, Yvonne
Pereira, Philomeno de Miranda, entre outros, foram pesquisadores encarnados ou
desencarnados que se destacaram na extensão do paradigma em sua pureza
original.
Uma questão que naturalmente
pode ser suscitada pela comparação do paradigma espírita com os paradigmas das
ciências ordinárias é a das revoluções científicas. A história mostra a
ocorrência de revoluções em quase todas as áreas da ciência, e se poderia
perguntar se o Espiritismo não estaria também sujeito a uma revolução. Essa é
uma questão delicada, e no pouco espaço que nos resta aqui não lhe podemos
fazer justiça plena. Nossa resposta comporta duas observações principais, que
esboçamos a seguir.
Primeiro, o exame isento e
criterioso da situação mostra de forma inquestionável que o Espiritismo não
experimenta, nem jamais experimentou, qualquer processo de acumulação de
anomalias, e muito menos em seus pontos essenciais, acumulação essa que
constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito para o desencadeamento de uma crise,
capaz de justificar a proliferação de teorias alternativas, e, eventualmente, a
substituição do paradigma. Aproveitamos para notar aqui que, em vista disso,
incorreram em erro científico aqueles que, já desde os primeiro tempos, têm
desenvolvido suas pesquisas fora do paradigma espírita. Não há razões
científicas para essa atitude, que só contribui para a dispersão de esforços
tão prejudicial ao avanço do conhecimento, como mostrou Kuhn.
A segunda parte de nossa
resposta passa pela observação de que, dada a natureza específica do paradigma
espírita, não se deve esperar que tenha um dia que ser abandonado ou modificado
em seus princípios fundamentais. A razão disso é que, exceto por alguns
princípios reguladores abstratos, tais princípios encontram-se muito próximos
do nível fenomênico, de modo que, utilizando-nos da nomenclatura filosófica,
poderíamos classificar a teoria espírita como essencialmente fenomenológica. O
exemplo mais claro de uma teoria desse tipo nas ciências ordinárias é a
termodinâmica, desenvolvida em meados do século 19. Por ser fenomenológica, ela
goza de uma alta estabilidade diante do progresso de outras áreas da ciência,
havendo atravessado incólume as radicais mudanças de paradigma ocorridas na física
nas primeiras décadas de nosso século. Essa característica da termodinâmica
exerceu grande atração sobre Einstein (entre outros), que procurou desenvolver
sua teoria especial da relatividade em moldes fenomenológicos.
Em termos simplificados,
podemos tentar esclarecer esse ponto dizendo que nas teorias
não-fenomenológicas (ditas teorias construtivas), que são a maioria das teorias
da física e da química, o "grau de teoricidade" dos princípios é
muito maior ; eles estão bem mais distantes da observação empírica direta. Em
tal caso, o caminho que vai dos fenômenos até os princípios teóricos é bastante
tortuoso, passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias, por
exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação dos dados fornecidos
pelos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias, a segurança com que os
princípios podem ser asseridos fica evidentemente reduzida; há, em geral,
possibilidades plausíveis de explicação dos mesmos fenômenos por princípios
teóricos diferentes. A história da física e da química ilustra bem a
vulnerabilidade de suas teorias construtivas, que vão sendo substituídas de
tempos em tempos.
No caso dos princípios
espíritas básicos, como a existência e sobrevivência do espírito, o
livre-arbítrio, a lei de causa e efeito, a reencarnação, etc., a situação é
bastante diversa. Sua confirmação independe totalmente de aparelhos, conforme
bem enfatizou Kardec, o que é uma enorme vantagem do ponto de vista
epistemológico, pelas razões esboçadas acima. São proposições da mesma classe
epistêmica que, digamos, as proposições de que o Sol existe, de que o fogo
queima, a cicuta envenena, etc. Notemos que a inferência espírita diante de um
fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos
a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa
casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá a idéia de que elas
não foram escritas por um determinado amigo, quando relatam fatos, contêm
expressões e veiculam pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se
dá com os variados e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas.
Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns
poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao
princípio básico da Doutrina Espírita, a existência e sobrevivência do
espírito.
Como se isso não bastasse, a
base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de
fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, vidência, a
pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma
classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em
inúmeros fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações
e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos
cercam, aos acontecimentos marcantes de nossa vida, aos distúrbios da
personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies
e das civilizações, etc. Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de
evidências a favor do Espiritismo constitui séria omissão por parte de seus
críticos e daqueles que tentam fazer ciência não-espírita do espírito.
Em outro artigo (Chibeni
1988; ver também Chibeni 1986) procuramos mostrar que Kardec possuía um senso
científico e filosófico que caminhava muito adiante de seu tempo, identificando
corretamente as características de uma verdadeira ciência, e desenvolvendo suas
pesquisas de acordo com elas. Isso fica claro tanto da análise de sua obra,
como de inúmeras declarações explícitas suas sobre a natureza da ciência, o que
torna ainda mais lamentável a busca de uma ciência do espírito fora do
paradigma kardequiano, busca essa que prossegue até nossos dias, quando os avanços
da filosofia da ciência já puderam mostrar cabalmente onde ela de fato se
encontra.
Notas:
1. Para um
esboço desses pontos, ver Chibeni 1984.
2. Suas
obras mais representativas são Kuhn 1970, Lakatos 1970 e Feyerabend 1978. Para
uma exposição mais ou menos acessível das idéias principais desses filósofos e
da concepção clássica de ciência, ver Chalmers 1978.
3. Sobre a
ética espírita e sua fundamentação na ciência espírita, ver Chibeni 1985.
Referências
bibliográficas:
(O leitor
poderá encontrar vertidas para o nosso idioma todas as obras em língua
estrangeira desta lista bibliográfica, embora, com exceção das indicadas
traduções das obras de Kardec a cargo da Federação Espírita Brasileira, essas
traduções apresentem, como é quase regra, falhas mais ou menos graves, que não
as recomendam ao estudioso exigente.)
CHALMERS, A. F. What is this Thing called Science? St.
Lucia, University of Queensland Press, 1978.
CHIBENI,
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moderna filosofia da ciência. Reformador, maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.
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Os fundamentos da ética espírita. Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
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. Por que Allan Kardec ? Reformador, abril de 1986, pp. 102-3.
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A excelência metodológica do Espiritismo. Reformador, novembro de 1988, pp.
328-33 e dezembro de 1988, pp. 373-8.
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Ciência espírita. Revista Internacional de Espiritismo, março de 1991, pp.
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FEYERABEND, P. K. Against Method. London, Verso, 1978.
KARDEC, A.
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Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
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L'Évangile selon le Spiritisme. Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira,
1979. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 87ª ed., Rio de
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de L'Union Spirite, 1951. O
Céu e o Inferno. Trad. Manuel Quintão. 28ª ed. Rio de Janeiro, Federação
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La Genèse, les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La
Diffusion Scientifique, s.d. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o
Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, s.d.
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Oeuvres Posthumes. Paris, Dervy-Livres, 1978. Obras Póstumas. Trad. Guillon
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POPPER, K. R. The Logic of Scientific Discovery. 2nd.
ed., revised. London, Hutchinson, 1968.
(Artigo
publicado no Reformador de junho de 1994, pp. 176-80.)
Leitura Recomendada;
AS
PROVAS CIENTÍFICAS
CIÊNCIA
ESPÍRITA
ALGUMAS
ABORDAGENS RECENTES DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS
A
PESQUISA CIENTÍFICA ESPÍRITA
AS
RELAÇÕES DA CIÊNCIA ESPÍRITA COM AS CIÊNCIAS ACADÊMICAS
A
“CIÊNCIA OFICIAL”
A
RELIGIÃO ESPÍRITA
REVISÃO
DA TERMINOLOGIA ESPÍRITA?
O
ESPIRITISMO EM SEU TRÍPLICE ASPECTO: CIENTÍFICO, FILOSÓFICO E RELIGIOSO 1
POLISSEMIAS
NO ESPIRITISMO
AS
ACEPÇÕES DA PALAVRA ‘ESPIRITISMO’ E A PRESERVAÇÃO DOUTRINÁRIA
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES OPORTUNAS SOBRE A RELAÇÃO ESPIRITISMO-CIÊNCIA
POR
QUE ALLAN KARDEC?
A
EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO
http://espiritaespiritismoberg.blogspot.com.br/2015/01/a-excelencia-metodologica-do-espiritismo.html
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