domingo, 5 de junho de 2016

Diálogo entre Espírito e Alma


Adilson Mota
adilsonmota1@gmail.com

Allan Kardec, como bom cientista e homem experiente, compreendia a importância de que cada conceito seja expresso através do termo apropriado a fim de facilitar o entendimento. Depreende-se esse cuidado do codificador na escrita dos itens I e II da Introdução de O Livro dos Espíritos. Mais adiante, na questão 134, os Espíritos estabeleceram uma diferen-ciação entre espírito e alma, definindo esta última como "Um Espírito encarnado".

À primeira vista não parece haver tanta diferença entre um e outro, pois a alma continua sendo um Espírito só que agora envolvido num corpo físico. Na prática, porém, há poucas semelhanças, pois o simples fato de participar de um meio material através do organismo biológico desenvolve mudanças graves na expressão, percepção, comunicação e locomoção do Espírito. Podemos imaginar um diálogo mais ou menos assim entre o espírito e a alma.

Espírito - Eu sou o ser essencial, o princípio inteligente, criado por Deus em um momento tal que não consigo decifrar, pois se perde na noite da minha infância como ser existente.

Alma - Eu carrego comigo essa essência, porém sou obrigado a carregar também um organismo pesado, como uma grossa vestimenta que mais parece um escafandro de carne. Existo a partir do instante em que penetro o mundo da matéria arrastado pelo corpo físico.

Espírito - O que eu penso, existe para mim. Meu pensamento é criador, cria a minha realidade íntima e também externa. Possuo a capacidade de exteriorização do pensamento que se concretiza como sendo o mundo objetivo em que vivo e que reflete o que carrego em mim, que pode ser um jogo de luz, de sombra ou os dois juntos.

Alma - Em mim, amigo Espírito, há uma desvantagem e uma vantagem. Desvantagem por que eu perdi esse potencial criador. Bom, pelo menos parte dele. Meu pensar já não consegue criar tanto, mas continua produzindo o mundo subjetivo dos meus sonhos, das minhas lembranças boas ou ruins. Não consigo manipular ao meu gosto os materiais ao meu redor. Pelo menos isso me traz uma vantagem: os desregramentos do pensamento não causam impacto ime-diato, pois que o material de que é feito o organismo físico serve de abafador do pensamento, de redutor, de isolante entre o pensamento e a realidade externa. Você é o grande ser abaixo de Deus, eu sou simplesmente uma alma.

Espírito - Você é que é feliz, minha amiga, pois as experiências que você produz é que me fizeram ser o que sou. Minhas capacidades desenvolvi graças a você ter se sacrificado bravamente nos recônditos da materialidade, des-de as longínquas eras em que o homem ainda perambulava de lugar em lugar à cata dos alimentos das árvores, lutando ferozmente pela sobrevivência de mais um dia junto com a sua prole e o seu bando, passando pelas lutas acerbas de todas as épocas enfrentando variadas experiências para dar desenvolvimento aos germes de inteligência que o Pai plantou.

Alma - Realmente eu vivo em um mundo difícil, buscando arar o solo ingrato do meu ser, à custa de sacrifícios e às vezes de sofrimentos.

Espírito - Você é apontada pelos versos dos poetas, embeleza as letras das músicas, é procurada pelos estudiosos da psique humana, pois que você assim o é, produz o calor humano, ameniza o furor dos descontrolados, pacifica o coração da mãe aflita, alivia o calor das paixões, arrebata o crente mais crente no testemunho da sua fé.

Alma - Isso ocorre, caro irmão Espírito, mas eu só consigo deixar aparecer um laivo daquilo que você é, eu só consigo manifestar uma réstia daquilo que é o princípio inteligente do Universo. A minha comunicação com os outros é lenta, difícil, entremeada de interpretações. Os meios de que me utilizo são limitados, uma boca, dois ouvidos, mãos e todo um arcabouço que para você deve ser muito desengonçado e simplório.


Alma - Você é mais sensível que eu. Em mim, tanto as impressões boas quanto ruins são abrandadas pelo meu instrumento grosseiro de aprendizado. Isolada aqui na matéria, eu me sinto às vezes numa corda bamba prestes a cair nas tentações e nos arrastamentos a que o corpo me submete. Feliz-mente, de vez em quando eu me comunico com você, Espírito, nos momentos de reflexão, de intros-pecção, de emancipação. Assim eu posso beber da sua sensatez. Você me faz lembrar dos meus compromissos, você que é muito mais antigo que eu, de uma vastidão muito maior que a minha. Desses contatos eu sempre volto pensativa. Às vezes esses encontros me fazem sofrer, quando eu percebo que não estou fazendo como deveria. Você alerta a minha consciência e isso às vezes dói, quando eu não estou seguindo o caminho que você traçou para mim.

Espírito - Este é o meu papel, pois é de meu inte-resse que você consiga realizar todo o planejamento. Só assim eu posso crescer, armazenar conheci-mentos e refinar os meus sentimentos. A você eu sou muito grato, alma amiga, pois é através das suas lutas e sacrifícios que eu me purifico.

Alma - Eu sou a sua projeção aqui na Terra, sou uma das suas faces moldada pelo meio em que habito e por tudo que eu vivo. Ao retornar em definitivo para o Mundo Espiritual me somarei aos milhares de experiências que você acumulou durante sua exis-tência. Sei que assim serei mais feliz, mas enquanto aqui estiver, valorizarei cada dia, cada instante até que eu aprenda a submeter esse corpo que por enquanto é mais forte que eu.

Espírito - Assim será, pois do teu esforço sairás límpida da Terra e serás mais um personagem por mim vivido, acumulando luz num progresso sem fim.
***
Se pudéssemos comparar, a alma representa a persona, a máscara, o personagem vivido no grande teatro da vida. O Espírito é o ator que se expressa de maneiras diferentes a cada peça em que atua. O autor é Deus que dispôs para nós os cenários, as vestimentas e tudo o mais que é necessário ao enredo da vida, deixando que atuemos com liberdade de expressão, mas respondendo sempre por aquilo que fizermos.


Fonte: Jornal Vortice ANO VIII, Nº 10 - Março– 2016

Emancipação da Alma – Morte Aparente


Adilson Mota
adilsonmota1@gmail.com

Certos povos do oriente se dedicam milenarmente a certas práticas que para a mentalidade médica ocidental não passa de expressões de anormalidade, sendo passíveis de tratamento. A morte aparente é um desses fenômenos que impressionam pelo inusitado em que, como o termo diz, o indivíduo mostra-se com todas as aparências da morte. O que para os iniciados orientais é natural e controlável, para nós ocidentais ainda soa como algo extraordinário que assusta ou deslumbra.

Os estados letárgicos avançados podem levar ao fenômeno de quase morte onde o sensitivo voluntária ou involuntariamente atinge um grau elevado de transe fazendo mas vezes com que as batidas do coração e a respiração não sejam mais sentidas. O Espírito ainda permanece ligado ao corpo, mas a vida fica por um fio.

É do conhecimento popular os casos de pessoas que eram enterradas vivas, pois ao se abrir o caixão, encontrava-se o defunto ou o seu esqueleto em posição diversa daquela na qual foi enterrado. Isso se dava numa época e região em que os conhecimentos médicos ainda não tinham alcançado o desenvolvimento moderno.

No Evangelho de João encontramos um exemplo de quase morte no sepultamento de Lázaro.

Estava, porém, enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta.

E Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com unguento, e lhe tinha enxugado os pés com os seus cabelos, cujo irmão Lázaro estava enfermo.

Mandaram-lhe, pois, suas irmãs dizer: Senhor, eis que está enfermo aquele que tu amas.

E Jesus, ouvindo isto, disse: Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela.

Assim falou; e depois disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono.

Chegando, pois, Jesus, achou que já havia quatro dias que estava na sepultura.

(Ora Betânia distava de Jerusalém quase quinze estádios.)

E disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe: Senhor, vem e vê.

E, tendo dito isto, clamou com grande voz: Lázaro, sai para fora.

E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: Desligai-o, deixai-o ir.

(João, XI, 1-4, 11, 17, 18, 34, 43, 44)

Logicamente, Lázaro não estava morto, pois nesse caso os elementos orgânicos já se encontrariam esparsos pela natureza impossibilitando o retorno à vida. Jesus usou da sua autoridade moral e força magnética conclamando Lázaro a retomar ao corpo, o que ele obedece de pronto. Para a época, este feito de Jesus era um verdadeiro milagre de ressurreição. Os conhecimentos magnéticos esclarecem a questão mostrando que a vontade irresis-tível do Mestre restituiu as ligações vitais que haviam se afrouxado entre o Espírito e o corpo, não permitindo que o fenômeno se desenvolvesse em direção à morte.

O fenômeno de quase morte pode ser realizado voluntariamente por pessoas de grande experiência, treinadas para tal, que conseguem emancipar-se do corpo físico e voltar ao estado de vigília de maneira programada, revelando uma grande autodisciplina.

Fonte: Jornal Vortice ANO VIII, Nº 12 – Maio – 2016


Emancipação da Alma – Catalepsia


Adilson Mota
adilsonmota1@gmail.com

A catalepsia é bastante parecida com a letargia. Nas duas há uma falta de capacidade do sensitivo em exercer um controle sobre os músculos. O que difere uma faculdade da outra é que na primeira há um enrijecimento muscular, enquanto que na última ocorre um “amolecimento do corpo”. Há ainda outra diferença, apesar de não ser absoluta: a letargia se apresenta, geralmente, no corpo inteiro e a catalepsia apenas em parte desse.

Na catalepsia também há perda de consciência corporal quanto à parte afetada, insensibilidade ao toque e à dor, enquanto o Espírito permanece desprendido, mas acompanhando de perto o que ocorre na sua contraparte biológica, se isso for do seu interesse. Poderá assim ouvir e ver as pessoas próximas, sem, contudo, poder respondê-las, já que não consegue manejar normalmente o corpo físico.

Com facilidade encontramos na internet imagens de pessoas cata-lépticas cujo enrijecimento corporal extremo faculta que se possa posicionar-se sobre o seu tronco sem conseguir vergá-lo. Ou ainda colocar pedras sobre o seu abdome e quebrá-las com uma pesada ferramenta sem que o sujet esboce a menor reação de dor ou de desconforto. Tudo isso enquanto ela está colocada sobre um suporte apenas pelas extremidades, cabeça e pés, como na figura abaixo.

O magnetismo tem uma intensa participação nesse fenô-meno. Sendo ele o intermediário entre o pensamento do Espírito e a manifestação a nível biológico, pode ele, pelo fato do Espírito se afastar temporariamente do corpo, deixar de intermediar a relação entre os dois gerando a reação cataléptica ou letárgica, como vimos na edição passada. Ou ainda, desejando o Espírito isolar-se do corpo, pode produzir uma modificação na estrutura magnética tornando-a momentaneamente incapaz de exercer qualquer controle sobre o organismo físico.

Desta forma, inúmeras experiências foram realizadas com catalépticos. Uma delas consiste em colocá-lo de pé e pedir-lhe que erga um braço. Depois, alguém tenta com todas as forças fazer o braço abaixar-se, o que só se consegue com muita dificuldade podendo mesmo causar danos ao seu sistema musculoesquelético e gerar dores que só serão sentidas após o transe.


A catalepsia pode ocorrer espontaneamente (sem que o indivíduo se dê conta), pode ser provocada voluntariamente, o que é mais raro, ou ainda através de um magnetizador. Nesse último caso, o magnetizador consegue comandar o sensitivo, colocando-o em transe cataléptico e retirando-o do mesmo à vontade. Pode conduzir experiências para estudos fisiológicos ou psicológicos, bem como utilizar as suas faculdades para investigações que ultrapassam as percepções dos sentidos físicos, explorando as percepções espirituais do sujet. Digite a equação aqui.

Fonte: Jornal Vortice ANO VIII, Nº 10 - Março– 2016


Emancipação da Alma – Letargia

Adilson Mota
adilsonmota1@gmail.com

E eis que chegou um dos principais da sinagoga, por nome Jairo, e, vendo-o, prostrou-se aos seus pés, e rogava-lhe muito, dizendo: Minha filha está moribunda; rogo-te que venhas e lhe imponhas as mãos, para que sare, e viva. E foi com  ele, e seguia-o uma grande multidão, que o apertava. Estando ele ainda falando, chegaram alguns dos principais da sinagoga, a quem disseram: A tua filha está morta; para que enfadas mais o Mestre? E Jesus, tendo ouvido estas palavras, disse ao principal da sinagoga: Não temas, crê somente. E não permitiu que alguém o seguisse, a não ser Pedro, Tiago, e João, irmão de Tiago. E, tendo chegado à casa do principal da sinagoga, viu o alvoroço, e os que choravam muito e pranteavam. E, entrando, disse-lhes: Por que vos alvoroçais e chorais? A menina não está morta, mas dorme. E riam-se dele; porém ele, tendo-os feito sair, tomou consigo o pai e a mãe da menina, e os que com ele estavam, e entrou onde a menina estava deitada. E, tomando a mão da menina, disse-lhe: Talita cumi; que, traduzido, é: Menina, a ti te digo, levanta-te. E logo a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos; e assombraram-se com grande espanto. E mandou-lhes expressamente que ninguém o soubesse; e disse que lhe dessem de comer. (MARCOS, V, 35-43)

Este texto extraído do Novo Testamento retrata um fato que é de certo modo comum, o da morte aparente. Jairo e seus familiares, sem conhecimento do  que ali se afigurava, achavam que a menina estivesse morta. Jesus, ercebendo o que realmente ocorria, informa-lhes que a menina está apenas dormindo. Operando o seu maravilhoso magnetismo, faz com que a criança retorne do seu "sono", levando os presentes ao assombro, imaginando uma verdadeira ressurreição.



Na classificação espírita este fenômeno é conhecido como  letargia. O indivíduo sai da consciência de vigília havendo a perda temporária da sensibilidade e do movimento. Em processo avançado, o corpo toma as aparências da morte.

Antes do desenvolvimento da ciência médica e da constatação da veracidade desses fatos, vários relatos falam de pessoas que foram enterradas vivas, o que pôde ser verificado quando da remoção dos ossos, onde estes foram encontrados em posição diferente daquela em que o cadáver foi enterrado.

A pessoa pode ficar nesse estado durante dias e exalar, inclusive, um odor de decomposição do corpo. Isto não significa que esteja morta e o Espírito desligado definitivamente da matéria. Foi o que aconteceu com Lázaro, no relato de João (capítulo XI do Evangelho).

A ciência oficial, ao buscar explicações estritamente materiais para estes acontecimentos, não consegue elaborar soluções que consigam justificá-los de forma satisfatória. A Doutrina Espírita, porém, como ciência do Espírito, tem na emancipação da alma os elementos que nos colocam no caminho do entendimento.

Nesse estado [emancipação, grande sobreexcitação ou preocupação], o Espírito não pensa no corpo e, em sua febril atividade, atrai a si, por assim dizer, o fluido perispiritual que, retirando-se da superfície, produz aí uma insensibilidade momentânea. Poder-se-ia também admitir que, em certas circunstâncias, no próprio fluido perispiritual uma modificação molecular se opera, que lhe tira temporariamente a propriedade de transmissão.(...) Efeito análogo, porém mais pronunciado, se verifica nalguns sonâmbulos, na letargia e na catalepsia. (A GÊNESE, cap. XIV Catalepsia. Ressurreições, Allan Kardec)

A letargia é um estado de emancipação da alma. Esta desprende-se parcialmente do corpo ocasionando uma relativa dificuldade do organismo físico receber e executar os comandos transmitidos pelo Espírito. Isso também contribui para gerar a insensibilidade que em alguns pode ser bem acentuada. O Espírito não perde a consciência, pelo contrário, maior consciência tem das coisas, além de manter a percepção do que ocorre ao redor podendo ouvir e ver, sem contudo conseguir comunicar-se com as pessoas presentes.


Fonte: Jornal Vortice ANO VIII, Nº 05 Fevereiro– 2016


sábado, 4 de junho de 2016

História da Era Apostólica - Racionalismo


“Como apreciar os racionalistas que se orgulham de suas realizações terrestres, nas quais pretendem encontrar valores finais e definitivos?

– Quase sempre, os que se orgulham de alguma coisa caem no egoísmo isolacionista que os separa do plano universal, mas, os que amam o seu esforço nas realizações alheias ou a continuidade sagrada das obras dos outros, na sua atividade própria, jamais conservam pretensões descabidas e nunca restringem sua esfera de evolução, porquanto as energias profundas da espiritualidade lhes santificam os esforços sinceros, conduzindo-os aos grandes feitos através dos elevados caminhos da inspiração.”1

HAROLDO DUTRA DIAS

A Segunda Fase do estudo da vida de Jesus, resultado do Iluminismo, é marcada pelas características daquele movimento – Racionalismo, Empirismo, oposição aos dogmas da Igreja – e pode muito bem ser compreendida como a primeira etapa2 da abordagem científica dos textos bíblicos.

Albert Schweitzer3 divide esse período (Segunda Fase) em quatro etapas distintas: a) Inicial (H. S. Reimarus), 2a) Racionalismo primitivo (J. J.Hess, F.V. Reinhardt, J. A. Jakobi e J. G.Herder), 3a) Racionalismo pleno (H. E. G. Paulus, K. A. Hase, F. E. D. Schleiermacher), 4a) Final (David. F. Strauss). Os dois autores principais deste período, sem dúvida, são H. S. Reimarus e David F. Strauss, responsáveis pelo surgimento e pelo encerramento deste Movimento. 


Em edições anteriores, apresentamos um breve resumo da contribuição de Reimarus ao estudo dos textos evangélicos, salientando seu caráter inovador, em razão de ter adotado uma perspectiva puramente histórica no tratamento do tema, e destacando suas duas preciosas contribuições: a divisão metodológica entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, e a proposição de que a pregação de Jesus só pode ser compreendida a partir do contexto da religião judaica do seu tempo.

Por outro lado, urge esclarecer que, simultaneamente ao lançamento dos “fragmentos de wolffenbüttel”,4 houve uma profusão de publicações conhecidas como “Vidas de Jesus do Racionalismo Primitivo” (2a etapa), sobre as quais discorreremos nesta edição.

O Racionalismo primitivo coloca-se entre o sobrenaturalismo ingênuo, que confia cegamente no dogma embora seja receptivo aos aspectos espirituais da vida, e o racionalismo pleno, que aceita apenas os aspectos racionais da religião com absoluta exclusão do elemento espiritual.

Na avaliação de Schweitzer, as melhores características do Racionalismo primitivo são a ingenuidade e a honestidade. É digno de nota o esboço desta etapa traçado pelo ilustre autor:5

As primeiras Vidas de Jesus racionalistas estão, de um ponto de vista estético, entre as menos agradáveis de todas as produções teológicas. O sentimentalismo de suas representações não tem limites. Sem limite também, e ainda mais inaceitável, é a falta de respeito para com a linguagem de Jesus. Ele tem que falar de uma forma racional e moderna, e portanto todas as suas falas são reproduzidas num estilo da mais polida modernidade. Nenhuma frase foi deixada como foi falada; todas elas são feitas em pedaços, parafraseadas, expandidas, e, algumas vezes, com o fim de torná-las realmente vívidas; elas são refundidas no molde do diálogo livremente inventado. Em todas estas Vidas de Jesus, nem uma só de suas falas mantém sua forma autêntica. E, no entanto, não podemos ser injustos com os seus autores. O que eles pretendiam era trazer Jesus para perto do próprio tempo deles, e assim fazendo tornaram-se os pioneiros do estudo histórico de Sua vida. Os defeitos de suas obras, em relação ao senso estético e ao fundo histórico, são suplantados pela atratividade do pensamento propositado e não preconceituoso que aqui desperta, espreguiça-se e começa a mover--se com liberdade.6

Os autores da Segunda Fase esforçam-se por libertar a mensagem do Cristo dos séculos de dogma e superstições que a encobriram. No entanto, a proposital exclusão do elemento espiritual bem como a confiança cega na incipiente ciência da época nos transmite a impressão de que houve apenas a troca do dogmatismo religioso pelo dogmatismo científico. 

Encerrando esse período, surge a figura de David F. Strauss, o mais renomado expoente do Racionalismo pleno. Na sua concepção, todos os elementos extraordinários da vida de Jesus devem ser categorizados à conta de mitos.

Partindo do estudo comparativo das religiões, Strauss procura identificar nas arrativas evangélicas grandes temas míticos, também presentes nas demais religiões do Orbe, imprimindo às suas avaliações um cunho fortemente psicológico.

A proliferação de biografias liberais de Jesus no século XIX, incluindo os nomes de David F. Strauss (1808-1874), de Ernest Renan (1823-1892), de H. H. Holtzmann (1832-1910) e de Johannes V. Weiss (1863-1914), revela que o ideal da objetividade e da isenção, tão proclamado pelo Racionalismo, nunca foi atingido.

Albert Schweitzer7 formula dura crítica à concepção que orientou a investigação realizada pelos autores do século XIX, revelando a fragilidade e a inconsistência das “vidas de Jesus” escritas no espírito do liberalismo da época. Ficou demonstrado que cada autor retratava Jesus à sua própria imagem.

O conhecimento desses fatos serve de alerta, sobretudo para os espíritas, competindo-nos examinar as pesquisas dos estudiosos do mundo com atenção e cuidado, mas sempre cotejando suas conclusões com a revelação espiritual. Em suma, urge reconhecer o cará caráter eminentemente subjetivo da ciência humana, ainda distante das equações definitivas no que respeita ao estudo dos textos sagrados.

Consoante às orientações do Benfeitor Emmanuel no lide deste artigo:


 [...] os que amam o seu esforço nas realizações alheias ou a continuidade sagrada das obras dos outros, na sua atividade própria, jamais conservam pretensões descabidas e nunca restringem sua esfera de evolução, porquanto as energias profundas da espiritualidade lhes santificam os esforços sinceros, conduzindo-os aos grandes feitos através dos elevados caminhos da inspiração.8

Assim, fugindo de toda extravagância intelectual, mantendo a humildade, vivenciando o ensino do Mestre, aprimorando a capacidade de análise através do estudo metódico e consistente, nos habilitamos ao recebimento da inspiração superior, que nos conduz, invariavelmente, ao porto seguro da verdade.

Fonte: Reformador Ano 125 / Dezembro, 2007 / N o 2.145

Referências:

1XAVIER, Francisco C. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 24. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003. Questão 203.
2A maior parte dos estudiosos do tema prefere chamar o período inaugurado por H. S. Reimarus de Primeira Fase, já que desconsideram toda a produção do supranaturalismo. Em certo sentido, estão corretos  já que não se pode falar em “busca do Jesus histórico”, antes do trabalho daquele autor. Todavia, como pretendemos traçar um esboço do estudo da figura de Jesus, em sentido amplo, preferimos incluir o período anterior ao Iluminismo.
3SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus histórico. São Paulo: Novo Século, 2003.32 478 Reformador • Dezembro 2007
4Nome dado aos sete fragmentos escritos por H. S. Reimarus, publicados por reformador dezembro 2007 - b.qxp 23/1/2008 14:15 Page 32 Gothold Ephraim Lessing, em 1778, na Alemanha.
5Albert Schweitzer (1875-1965) foi organista concertista de fama, teórico da música, pastor e pregador, professor de Teologia, diretor de um seminário teológico, médico, humanista, e ganhador do Prêmio Nobel da Paz.
6SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. Cap. III, p. 39.
8XAVIER, Francisco C. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 24. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003. Questão 203.



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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Emancipação da Alma - Sensibilidade X Insensibilidade

Adilson Mota
adilsonmota1@gmail.com

Um dos fenômenos mais extraordinários que se pode verificar através de um estado de emancipação da alma é o da insensibilidade física. Não é todo estado de emancipação que pode provocar essa situação, nem qualquer indivíduo. Porém, quando se manifesta, chama sempre a atenção pelo inusitado. Escreveu Deleuze em seu livro Instruções Práticas sobre o Magnetismo que “entre os fenômenos que frequentemente tem apresentado o sonambulismo há do qual se pode tirar, em certas circunstâncias, a maior vantagem: tal é o da insensibilidade absoluta. Tem-se visto sonâmbulos a quem se pode beliscar e espetar com força sem que o sentisse”. 

Por outro lado, sabe-se o quanto certos indivíduos em estado de transe se tornam sensíveis num sentido especial. Percebem os sentimentos e intenções das pessoas à sua volta que lhe produzem sensações agradáveis ou desagradáveis de conformidade com o que vai no íntimo delas. A presença de curiosos ou opositores pode causar mal-estar e obstar o bom funcionamento das suas faculdades psíquicas.

Na mesma obra abordou Deleuze essa questão da seguinte forma: “Afastareis todas as testemunhas inúteis, todos os curiosos, e em especial os incrédulos”.

Se alguém entra no ambiente de experiências de inopino, isso pode causar impressões que através das vibrações emitidas atrapalham o processo de emancipação da alma e provocam certos distúrbios ao fenômeno e seus resultados. Há aqueles que sentem com facilidade a emanação fluídica das pessoas e coisas ao seu redor devido a uma extrema sensibilidade magnética que possuem nesse estado. Nesses casos não é necessário dizer que o toque direto deve ser evitado por quem não o induziu ao transe. 

A despeito dessa extraordinária sensibilidade e percepção, há aqueles que desenvolvem a capacidade de insensibilizar-se fisicamente. Mantém a sensibilidade da alma, mas não são afetados através dos sentidos. O tato foi anulado, assim como a audição, a visão e o olfato. 

A esse respeito assim se expressou o Barão du Potet em seu livro Tratado Completo de Magnetismo Animal: 

Donde vem esse poder incomensurável do magnetismo que chega a suspender a sensibilidade durante as operações mais dolorosas e que permite aos instrumentos lacerar as carnes, cortá-las e queimá-las sem que o paciente emita um grito, sem que ele enfim sinta uma única das angústias e, digo mais, sem que ele tenha uma pulsação a mais do que no seu estado de calma? 

Mais adiante o Barão relata uma das cirurgias praticada em Cherbourg, de glândulas cancerosas, pelo Dr. Loysel assistido pelo Sr. Gibon, médico-cirurgião. A cirurgia, ocorrida em 19 de setembro de 1846 teve os dados extraídos dos autos do relatório e foi assistida por mais 50 pessoas. Citamos apenas alguns trechos.

 “Às duas horas e quarenta minutos, a paciente foi magnetizada e adormecida pelo Sr. L. Durand, de uma distância de dois metros e em menos de três segundos. Então o cirurgião, para se assegurar da insensibilidade da doente, perfurou-a bruscamente e por repetidas vezes com um longo estilete na carne do pescoço; um frasco de amoníaco concentrado foi colocado sobre o nariz da paciente. Esta permanece imóvel; nenhuma sensação é percebida, nenhuma alteração se mostra sobre sua feição e nem uma única impressão de fora chega até ela.” 

[...] 

“Por toda a duração da operação, a Srta. Le Marchand permaneceu calma e insensível; nenhuma emoção a agitou; nenhuma contração muscular aconteceu, mesmo quando o bisturi penetrou na carne; ela estava como uma estátua; enfim, a insensibilidade era absoluta.” 

Terminada a cirurgia, dizem os autos, a paciente sorria sem nenhuma lembrança do que tinha ocorrido, com o semblante a demonstrar calma e bem-estar.

Aumento da sensibilidade psíquica e redução da sensibilidade física fazem parte dos fenômenos de emancipação da alma, dos quais ainda pouco se conhece necessitando de estudos e pesquisas para descobrirmos toda a sua aplicabilidade.