sábado, 27 de fevereiro de 2016

História da Era Apostólica - Supranaturalismo x Racionalismo


“A Ciência e a Religião não puderam, até  hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse.  Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem [...].”1


HAROLDO DUTRA DIAS

Em edições anteriores, destacamos que a Primeira Fase do estudo da vida de Jesus pode muito bem ser compreendida  como a etapa da abordagem puramente religiosa e teológica. [Ver Reformador dos meses de junho/ 07, p. 34, e julho/07, p. 34.]

O “endeusamento” da figura do Cristo estancou a busca pelas suas origens, sua cultura, seus ensinos. Nessa época, vigorou o chamado supranaturalismo,2 visto como credulidade ingênua nos milagres e nas curas de Jesus, e na unidade da natureza divina e da natureza humana na pessoa do Cristo (dogma da encarnação).

Na esteira do Empirismo Inglês3 (Francis Bacon, 1561-1626) e do Racionalismo Continental4 (René Descartes, 1596-1650) surge Baruch Spinoza (1632-1677), propondoa leitura e interpretação dos livros bíblicos, como todo e qualquer escrito, à luz do Racionalismo.

A oposição à fé e à religião, herança  do Renascimento, culminaria no estabelecimento do Iluminismo (Aufklärung). Immanuel Kant, um expoente da filosofia desta época, definiu o Iluminismo como “a saída dos homens do estado de menoridade (não-emancipação) devido a eles mesmos. Menoridade é a incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro. Essa menoridade será devida a eles mesmos se não for causada por deficiência intelectual, mas por falta de decisão e coragem para utilizar o intelecto como guia. Sapere aude! Ousa saber! É o lema do iluminismo”.5

O século das luzes, trazendo em seu bojo o Empirismo, o Racionalismo, a crítica histórica e textual, o Enciclopedismo, não poupou os textos bíblicos. O complexo desenvolvimento de concepções e metodologias, abrangendo várias áreas de estudo, favoreceu a aplicação da crítica aos textos sagrados.

A leitura tradicional e piedosa dos Evangelhos, filha da credulidade ingênua, eivada de ogmatismo religioso milenar, sofre duro golpe. Influenciado pelo Iluminismo, H. S.Reimarus (1694-1768) inaugura a abordagem rigorosamente histórica dos quatro Evangelhos. Tem início, com a publicação dos seus fragmentos, a “busca do Jesus histórico”.

A Segunda Fase6 do estudo da vida de Jesus, iniciada por Reimarus, é marcada pelo espírito da época – Racionalismo. Nesse contexto, há uma resistência sistemática a todos os fatos ditos miraculosos, descritos nas páginas do Novo Testamento. O nascimento virginal, a ressurreição, as curas e os milagres despertam o interesse de inúmeros pesquisadores, que buscam, cada um à sua maneira, explicações “racionais” para esses eventos extraordinários da vida do Mestre.

Assim, concomitante ao lançamento dos “fragmentos de wolffenbüttel”,7 há uma profusão de publicações conhecidas como “Vidas de Jesus do Racionalismo”, caracterizadas como tentativas da Teologia alemã de explicar, do modo mais claro e racional possível, o elemento supranatural das narrativas evangélicas.

A premissa básica desses autores consiste em rejeitar, por falta de embasamento histórico, todos aqueles fatos que não possam ser compreendidos com o auxílio das leis naturais. A dimensão espiritual da vida é rotulada de “sobrenatural” e, conseqüentemente, desprezada. A Ciência, embora ensaiando os primeiros passos, jáse revestia da arrogância, tão duramente criticada na Religião.

Na próxima edição, traçaremos um esboço das idéias principais dos racionalistas, citando os autores mais representativos do período. Antes, porém, cumpre avaliar a atitude desses estudiosos à luz da revelação espiritual.
Abordando a questão do Racionalismo, o Espírito Emmanuel faz considerações valiosas a respeito do assunto:

Questão 199 – Poderá a Razão dispensar a Fé? – A razão humana é ainda muito frágil e não poderá dispensar a cooperação da fé que a ilumina, para a solução dos grandes e sagrados problemas da vida.

Em virtude da separação de ambas, nas estradas da vida, é que observamos o homem terrestre no desfiladeiro terrível da miséria e da destruição. [...]
....................................................
Questão 202 – No problema da investigação, há limites para aplicação dos métodos racionalistas?

– Esses limites existem, não só para a aplicação, como também para a observação; limites esses que são condicionados pelas forças espirituais que presidem à evolução planetária, atendendo à conveniência e ao estado de progresso moral das criaturas.

É por esse motivo que os limites das aplicações e das análises chamadas positivas sempre acompanham e seguirão sempre o curso da evolução espiritual das entidades encarnadas na Terra.8

Vê-se que a proposta da Espiritualidade superior reside na conjugação da Razão e da Fé, não somente nos assuntos relacionados ao conhecimento, mas, sobretudo, na construção de uma sociedade pacífica, justa e fraterna.Na feliz expressão do Codificador,9 é preciso encher o vazio que separa Religião e Ciência com o conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo.

Uma vez compreendidas essas relações, os milagres, as curas, e outros fenômenos eminentemente espirituais, descritos nos Evangelhos, serão vistos como decorrentes de leis imutáveis. Vencida essa resistência tola, imposta pela ciência materialista pós-iluminista, o aprendiz do Mestre estará em condições de extrair o espírito da letra, recolhendo as lições imorredouras que fluem dos fatos extraordinários da Vida de Jesus.


Fonte; Revista de Espiritismo Cristão Ano 125 / Novembro/2007  N o 2.144

Referencias:


1KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 127. ed. Rio de Janeiro: FEB,2007. Cap. I, item 8, p. 61.
2“O que acontece na natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não pode ser explicado com base neles. É um conceito próprio da Teologia Cristã, que atribui à fé a crença no sobrenatural, assim entendido.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia.5. ed. revista e ampliada. Martins Fontes. p. 1080.
3Corrente filosófica para a qual toda ideia é proveniente de uma percepção sensorial (cinco sentidos), logo a experiência é critério ou norma da verdade. Nesse sentido, toda verdade pode e deve ser posta à prova, e, em conseqüência, modificada, corrigida ou abandonada. Entre seus representantes podemos citar Francis Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley, Hume
4Posição filosófica dos séculos XVII e XVIII, na Europa, supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o Empirismo, tendo como expoentes Descartes,Malebranche, Spinoza, Leibniz,Wolff.
5ABBAGNANO,Nicola.Dicionário de filosofia. 5. ed. revista e ampliada. Martins Fontes. p. 618.
6A maior parte dos estudiosos do tema prefere chamar o período inaugurado por H. S. Reimarus de Primeira Fase, já que desconsideram toda a produção do Supranaturalismo. Em certo sentido, estão corretos já que não se pode falar em “busca do Jesus histórico”, antes do trabalho daquele autor. Todavia, como pretendemos traçar um esboço do estudo da figura de Jesus, em sentido amplo, preferimos incluir o período anterior ao Iluminismo. Baruch Spinoza: leitura e interpretação dos livros bíblicos à luz do Racionalismo Immanuel Kant
7Nome dado aos sete fragmentos escritos por H. S. Reimarus, publicados por Gothold Ephraim Lessing, em 1778, na Alemanha. Novembro
8XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003.
9Texto utilizado como epígrafe deste artigo (Referência 1). 38 444 Reformador • Novembro 2007


Leitura Recomendada:

História da Era Apostólica (SÉCULO I) – PARTE I
História da Era Apostólica (Século I) – Parte II
História da Era Apostólica - Racionalismo
História da Era Apostólica - Novas perguntas
História da Era Apostólica Jesus – Governador Espiritual do Orbe
História da Era Apostólica - A fé transporta montanhas
História da Era Apostólica - As parábolas de Jesus
História da Era Apostólica - A crucificação de Jesus
História da Era Apostólica - O candidato a discípulo
História da Era Apostólica - Os alicerces da Igreja Cristã
História da Era Apostólica - A lição do arado
História da Era Apostólica - A preparação no deserto
História da Era Apostólica – O primeiro Mártir
História da Era Apostólica – No trato com a Revelação
História da Era Apostólica - A conversão de Saulo
História da Era Apostólica - Caminho para Deus
História da Era Apostólica - Síntese da Cronologia
História da Era Apostólica - Ainda a Síntese Cronológica
Profecias bíblicas
O Novo Testamento - Redação

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

História da Era Apostólica (Século I) – Parte II


“Do Jesus revolucionário e violento ao Jesus mago e folgazão, do fanático apocalíptico ao mestre de sabedoria ou filósofo cínico e indiferente à escatologia, qualquer situação que se possa conceber, qualquer teoria extrema que se possa imaginar já foram há muito propostas, com as posições antagônicas anulando-se mutuamente e com os erros do passado sendo repetidos por novos escritores afoitos. Num certo sentido, existem tantos ‘livros sobre Jesus’ que dariam para três vidas, e um budista pecador poderia muito bem ser condenado a passar as próximas três encarnações lendo-os todos.”1

HAROLDO DUTRA DIAS

Prosseguindo em nossa jornada pelas estradas do Cristianismo do primeiro século, torna-se necessário esclarecer o estado atual da pesquisa acadêmica, fazendo um balanço dos seus avanços e retrocessos nos últimos três séculos, antes de relacioná-la com as revelações da Espiritualidade Superior.

Duas razões justificam esse procedimento. De um lado, a constatação de que foram ropostas, ao longo do tempo, as maiores extravagâncias com relação à pesquisa da vida de Jesus, “com os erros do passado sendo repetidos por novos escritores afoitos”, na feliz expressão de John Meier, exigindo do leitor alta dose de senso crítico, antes de defender essa ou aquela idéia. De outro lado, o reconhecimento de que as obras mediúnicas, igualmente, reclamam exame acurado, para que não se adote postura mística incompatível com a fé raciocinada.
Corroborando nossas assertivas, a advertência de Emmanuel é providencial.

Além do túmulo, o Espírito desencarnado não encontra os milagres da sabedoria, e as novas realidades do plano imortalista transcendem aos quadros do conhecimento contemporâneo, conservando-se numa esfera quase inacessível às cogitações humanas, escapando, pois, às nossas possibilidades de exposição, em face da ausência de comparações analógicas, único meio de impressão na tábua de valores restritos da mente humana.2 (Destaque do autor)


Assim, ao combinar revelação mediúnica e pesquisa histórica, torna-se essencial definir quais autores serão consultados, tanto no plano físico quanto no plano espiritual.

Do ponto de vista espiritual, privilegiamos a Codificação e a produção mediúnica de Francisco Cândido Xavier, sem que isso represente qualquer menosprezo de nossa parte a outros médiuns confiáveis e honrados. O motivo da escolha se deve à especificidade do tema em estudo, mais amplamente desenvolvido neste conjunto de obras.

Com relação aos trabalhos acadêmicos, a questão se torna mais tormentosa. A investigação histórica sobre Jesus e sobre o Cristianismo do primeiro século, como todo trabalho científico, apresenta fases de desenvolvimento, refletindo o progresso da pesquisa. Nesse sentido, é imperioso saber a que fase pertence determinado autor, sob pena de se tomar como verdade conclusões que já foram amplamente rechaçadas pela geração posterior de estudiosos.

Vê-se que o desafio será, a cada passo, conjugar revelação espiritual segura com pesquisa histórica atualizada, séria, embasada. 

Feitas essas considerações, faremos um breve resumo das fases da pesquisa sobre o Cristianismo Primitivo, apontando os autores mais representativos de cada etapa, suas propostas, conclusões, erros e acertos. Mãos a obra!

Primeira Fase: Nos domínios da Oralidade

Nos três primeiros séculos do Cristianismo, a busca pelo “Jesus histórico” era realizada junto às testemunhas oculares, que haviam presenciado seus feitos, suas prédicas, seu sacrifício extremo. Todos queriam beber na fonte da tradição apostólica. O material de consulta disponível era fruto da narrativa dos apóstolos e dos demais seguidores do Mestre, bem como do testemunho dos beneficiários das curas, dos milagres, enfim, das confidências de todas as pessoas simples e anônimas que tiveram o privilégio do contato direto com o Cristo.

Nessa época, a história do Cristianismo Primitivo estava sendo construída, ao preço do sacrifício e da renúncia.Muitas vidas foram ceifadas para que a luz da Boa Nova pudesse atravessar os séculos. Com o sangue do martírio foram traçadas as mais belas páginas desta epopéia.

Neste quadro de perseguição, é compreensível o pouco interesse pela sistematização da história do Cristianismo. Coube a Lucas, sob a orientação de Paulo de Tarso, dar os primeiros passos, compondo dois livros: O Evangelho e Atos dos Apóstolos. Todavia, o objetivo deste autor, com a redação destas obras, é mais de um evangelizador do que de um historiador. Nem poderia ser diferente.

Com a conversão do imperador  Constantino (ano 312 d.C.), o Cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano. No entanto, as autoridades da época enfrentam um problema crucial para a sobrevivência dessa aliança. Como conciliar a simplicidade e pureza daquele movimento, cujo fundador fora um galileu humilde, que vivera nas margens do Tiberíades, com a pompa do Império? Como harmonizar os aspectos essencialmente judaicos da Boa Nova, resultado de mais de dois mil anos de história do povo hebreu, com a cultura greco-romana?

Por fim, como estabelecer o monoteísmo onde vigorava o culto aos deuses tutelares da família, da agricultura, da raça? A Igreja Romana foi a resposta, historicamente bem--sucedida, para essas indagações.

A institucionalização das igrejas, o estabelecimento do papado, a pompa emprestada ao culto, a proliferação de imagens e rituais aplacou a sede greco-romana dos cidadãos do Império, convertidos ao movimento do Profeta de Nazaré, não obstante sua doutrina tenha sido completamente descaracterizada, sobretudo em razão do rompimento total com as suas origens.

No período compreendido entre o ano 400-1700 d.C., o profeta galileu, simples e austero, bondoso e justo, considerado pelos seus contemporâneos como o Messias de Israel, foi transformado em uma das pessoas da Trindade, ao mesmo tempo Filho e Pai, feito da mesma substância do Criador.Um verdadeiro Deus, à moda dos deuses gregos Zeus, Apolo, Hermes.

Esse “endeusamento” da figura do Cristo estancou a busca pelas suas origens, sua cultura, seus ensinos. Nessa época, vigorava a mais absoluta confusão entre o “Jesus histórico” e o “Jesus da fé”.
Adorado como o Deus encarnado, nenhum estudioso tinha tamanha autonomia intelectual para transformar esse personagem em objeto de pesquisa histórica, nem coragem para enfrentar as fogueiras da Inquisição.

Num mundo de escassos pergaminhos e reduzidos leitores, de hegemonia da tradição oral, de confusão entre Religião e Estado, não seria de se admirar que a abordagem objetiva, imparcial, criteriosa da vida de Jesus fosse uma utopia.

Essa primeira fase, cuja duração atingiu a marca dos dezessete séculos, pode muito bem ser compreendida como a etapa da abordagem puramente religiosa e teológica. Não havia Ciência, tal como é hoje compreendida, razão pela qual crença e preconceito, opinião e certeza, freqüentemente, se misturam, exigindo prudência.

Fonte: Reformador Ano 125 / Julho, 2007 / N o 2.140

Referências:

1MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 13.
2XAVIER, Francisco C. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. “Definição”, p. 20.

Leitura Recomendada:

História da Era Apostólica (SÉCULO I) – PARTE I
História da Era Apostólica - Supranaturalismo x Racionalismo
História da Era Apostólica - Racionalismo
História da Era Apostólica - Novas perguntas
História da Era Apostólica Jesus – Governador Espiritual do Orbe
História da Era Apostólica - A fé transporta montanhas
História da Era Apostólica - As parábolas de Jesus
História da Era Apostólica - A crucificação de Jesus
História da Era Apostólica - O candidato a discípulo
História da Era Apostólica - Os alicerces da Igreja Cristã
História da Era Apostólica - A lição do arado
História da Era Apostólica - A preparação no deserto
História da Era Apostólica – O primeiro Mártir
História da Era Apostólica – No trato com a Revelação
História da Era Apostólica - A conversão de Saulo
História da Era Apostólica - Caminho para Deus
História da Era Apostólica - Síntese da Cronologia
História da Era Apostólica - Ainda a Síntese Cronológica
Profecias bíblicas
O Novo Testamento - Redação

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

História da Era Apostólica (SÉCULO I) – PARTE I


“Não podemos conhecer o Jesus ‘real’ através da pesquisa histórica, quer isto  signifique sua realidade total ou apenas um quadro biográfico razoavelmente completo. No entanto podemos conhecer o ‘Jesus histórico’. Por Jesus da história, refiro-me ao Jesus que podemos ‘resgatar’ e examinar utilizando os instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica.”1

HAROLDO DUTRA DIAS

No Dallas Theological Seminary (Texas, USA), no mês de maio de 1965, Harold W. Hoehner defendeu sua tese de doutorado sobre a cronologia da Era Apostólica. Seu trabalho contrariava a tradicional e respeitada posição dos eruditos do seu tempo, propondo uma completa releitura das fontes históricas sobre o tema. Ao estabelecer uma nova cronologia para o primeiro século do Cristianismo, o autor apontava a necessidade de revisar todas as conclusões dos estudiosos que o antecederam.

A tese de Hoehner foi timidamente acolhida nos meios acadêmicos, a ponto de receber o nome de “cronologia alternativa”. Atualmente, porém, vários pesquisadores têm confirmado as proposições do professor norte-americano, incorporando muitas de suas idéias.

Surpreendentemente, a leitura meticulosa dos romances psicografados por Francisco Cândido Xavier revelou um fato inusitado as datas estabelecidas pelo Espírito Emmanuel, nessas obras, eram freqüentemente idênticas àquelas defendidas por Harold Hoehner. À guisa de exemplo, podemos citar três episódios da vida do Cristo: o seu nascimento (ano 5 a.C.), o início do seu ministério (ano 30 d.C.) e a crucificação (ano 33 d.C.), todos ocorridos, segundo estes dois autores, nas datas acima especificadas. Vê-se que Jesus foi crucificado com trinta e oito anos!2

No romance Paulo e Estêvão, o Espírito Emmanuel desenvolveu um quadro cronológico das atividades apostólicas que se assemelha àquele elaborado pelo professor do Texas. Um detalhe, porém, salta aos olhos: o romance foi psicografado no primeiro semestre de 1941, na provinciana cidade de Pedro Leopoldo (MG), ao passo que a tese foi defendida 24 anos mais tarde, na famosa universidade de teologia norte-americana.

A constatação desses fatos nos conduz a profundas reflexões sobre o caráter da Revelação dos Espíritos, e, mais especificamente, sobre o tríplice aspecto da Doutrina Espírita. O Espiritismo é uma Ciência com identidade própria, já que possui objeto de estudo próprio (o mundo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo) e método de pesquisa próprio (mediunidade).

Nesse sentido, são valiosas as considerações do Codificador a respeito do assunto:

Assim como a Ciência propriamente dita tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual. Ora, como este último princípio é uma das forças da Natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente [...].3

Essa relação de complementação entre a Ciência e o Espiritismo pode ser vista como união de esforços com vistas ao aprimoramento do saber humano, já que possibilita uma abordagem integral dos problemas, levando em conta seus aspectos materiais e espirituais concomitantemente.

No prólogo deste artigo há uma citação do historiador John P. Meier, professor na Universidade Católica de Washington D. C., considerado um dos mais eminentes pesquisadores bíblicos de sua geração.

Ao estabelecer os limites da Ciência e da investigação humanas, ele adverte: “Por Jesus da história, refiro-me ao Jesus que podemos ‘resgatar’ e examinar utilizando os instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica”.

A atitude de cautela e humildade, esboçada por inúmeros cientistas, como John Meier, tem sido o traço da Ciência pós-moderna, favorecendo o diálogo com a Doutrina Espírita, que, por sua vez, oferece subsídios valiosos, inacessíveis aos “instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica”.

Não se trata de sobrepujar a Ciência, desprezar suas conclusões, numa atitude ística incompatível com a fé raciocinada. O desafio é “complementar”, “unir”, “dialogar”, onde as duas partes estão dispostas a ouvir e falar.

As palavras do Codificador, mais uma vez, lançam inestimáveis luzes sobre a questão em debate.

A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem. [...]4

Seguindo as pegadas de Allan Kardec,Emmanuel e outros Benfeitores do mundo espiritual, o presente artigo inaugura uma nova coluna na revista Reformador, intitulada “Cristianismo Redivivo”.Nossa proposta é salientar a contribuição oferecida pela revelação espiritual no equacionamento de graves problemas relativos à história de Jesus, dos seus seguidores diretos e do Cristianismo, de modo geral, visando a apropriação, com maior segurança e legitimidade, da essência da Boa Nova, alicerce de todas as pro-postas de renovação veiculadas pela Doutrina dos Espíritos.

O esforço não é novo. A tarefa de unir pesquisa histórica e revelação espiritual pode ser encontrada na obra A Caminho da Luz. Desse livro monumental, destacamos dois trechos que servem de baliza à nossa iniciativa, ao mesmo tempo em que definem os rumos da nossa busca.

Não deverá ser este um trabalho histórico. A história do mundo está compilada e feita. Nossa contribuição será à tese religiosa, elucidando a influência sagrada da fé e o ascendente espiritual, no curso de todas as civilizações terrestres. [...]5

Esse esforço de síntese será o da fé reclamando a sua posição em face da ciência dos homens, e ante as religiões da separatividade, como a bússola da verdadeira sabedoria.6

O Espírito Emmanuel esclarece que não tem a função de repetir o trabalho dos historiadores, competindo-lhe, essencialmente, revelar o ascendente espiritual da evolução humana. Com isto, depreende-se que a leitura dos historiadores, a conjugação das informações por eles oferecidas com a revelação dos Espíritos, enfim, a pesquisa puramente humana, representa a parcela de trabalho que nos compete nessa empreitada. Feitas estas considerações, convidamos o leitor a iniciar uma longa jornada pelos trilhos da história do Cristianismo, conjugando fé e razão, revelação mediúnica e pesquisa histórica. Dedicaremos inúmeros artigos à construção da cronologia do primeiro século do Cristianismo, utilizando, basicamente, a tese de Harold W. Hoehner e a obra Paulo e Estêvão. Paralelamente, aproveitaremos o ensejo para abordar questões históricas, geográficas, culturais e lingüísticas necessárias ao aprofundamento da análise. Nesse caso, será indispensável recorrer à literatura especializada, relacionando-a com o acervo mediúnico de Francisco Cândido Xavier, como um todo.

Como nossa proposta é fomentar o diálogo entre Espiritismo e Ciência, por vezes será necessário esclarecer o estado atual da pesquisa acadêmica antes de cotejar os dados oferecidos pela Espiritualidade Superior. Todavia, uma advertência se impõe. Não se trata de oferecer todas as respostas, nem de resolver todos os enigmas. Por vezes, teremos de nos contentar com o aprimoramento de nossas indagações.Afinal de contas, saber perguntar é o primeiro passo para encontrar a verdade. Mais uma vez, é Emmanuel que vem em nosso socorro.

Além do túmulo, o Espírito desencarnado não encontra os milagres da sabedoria, e as novas realidades do plano imortalista transcendem aos quadros do conhecimento contemporâneo, conservando-se numa esfera quase inacessível às cogitações humanas, escapando, pois, às nossas possibilidades de exposição, em face da ausência de comparações analógicas, único meio de impressão na tábua de valores restritos da mente humana.

Além do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas equações, nesse ou naquele setor de investigação e de análise. É por essa razão que somente poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra derradeira. Considerada a nossa contribuição nesse conceito indispensável de relatividade, buscaremos concorrer com a nossa modesta parcela de experiência, sem nos determos no exame técnico das questões científicas, ou no objeto das polêmicas da Filosofia e das religiões, sobejamente movimentados nos bastidores da opinião, para considerarmos tão-somente a luz espiritual que se irradia de todas as coisas e o ascendente místico de todas as atividades do espírito humano dentro de sua abençoada escola terrestre, sob a proteção misericordiosa de Deus.7

Assim, está dado o primeiro passo da nossa jornada de muitas milhas. Que Deus nos abençoe os propósitos.

Fonte; Revista de Espiritismo Cristão Ano 125 / Junho, 2007 / N o 2.139

Referências:


1MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 35.
2XAVIER, Francisco Cândido. Crônicas de além-túmulo. Pelo Espírito Humberto de Campos. 15. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. 15, p. 90 (a data de nascimento de Jesus será abordada com maiores detalhes em futuros artigos desta coluna).
3KARDEC, Allan. O espiritismo na sua expressão mais simples. Rio de Janeiro: FEB, 2006. Cap. III, item 16, p. 100.
4KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 126. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. Cap. I, item 8, p. 61.
5XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 34. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. “Antelóquio”, p. 11.
6Idem, ibidem. “Introdução”, p. 13.
7XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 27. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. “Definição”, p. 20.



Leitura Recomendada:

História da Era Apostólica (Século I) – Parte II
História da Era Apostólica - Supranaturalismo x Racionalismo
História da Era Apostólica - Racionalismo
História da Era Apostólica - Novas perguntas
História da Era Apostólica Jesus – Governador Espiritual do Orbe
História da Era Apostólica - A fé transporta montanhas
História da Era Apostólica - As parábolas de Jesus
História da Era Apostólica - A crucificação de Jesus
História da Era Apostólica - O candidato a discípulo
História da Era Apostólica - Os alicerces da Igreja Cristã
História da Era Apostólica - A lição do arado
História da Era Apostólica - A preparação no deserto
História da Era Apostólica – O primeiro Mártir
História da Era Apostólica – No trato com a Revelação
História da Era Apostólica - A conversão de Saulo
História da Era Apostólica - Caminho para Deus
História da Era Apostólica - Síntese da Cronologia
História da Era Apostólica - Ainda a Síntese Cronológica
Profecias bíblicas
O Novo Testamento - Redação

sábado, 21 de novembro de 2015

KARDEC, O PENSADOR


Hermínio C. de Miranda

Não se pode medir a importância e profundidade das ideias dos pensadores pelo êxito que alcançam ao publicar as suas obras. Alguns sistemas filosóficos passam por um período mais longo ou mais curto de hibernação até que consigam despertar a atenção e o interesse dos leitores. Outros, que parecem surgir vitoriosos, fenecem com o tempo e cedem a praça a novos sistemas fascinantes à fantasia do homem na sua busca interminável da verdade.
Existirá alguma lei que determine ou que, pelo menos, explique essas variações de êxito dos sistemas filosóficos? Parece que há. Para início de conversa, creio poder afirmar-se que o êxito, em termos humanos, é uma componente quantitativa mais do que qualitativa. Em outras palavras: o sucesso é alcançado por aquele que consegue interessar o maior número de pessoas e não pelo que tem o melhor sistema, a melhor peça teatral, o melhor romance, a mais bela sinfonia. Por conseguinte, podemos também concluir que o êxito mundano de um sistema filosófico depende da sua sintonia com o pensamento dominante de cada época. Dando um passo mais à frente, parece legítimo afirmar, em consequência, que pensador de êxito é aquele que consegue interpretar e traduzir o sentimento e as tendências dominantes da sua época, ou, por outra, que se afina com o estágio evolutivo das maiorias. Isto vale dizer que cada época tem os filósofos que merece.
Não é difícil de demonstrar a tese. Pelas tendências da sociedade moderna, podemos facilmente inferir os tipos predominantes de pensadores e seus sistemas. E que vemos? Uma esmagadora maioria humana sem rumo, num esforço desesperado para libertar-se dos conceitos fundamentais da moral que, embora nem sempre bem observados, constituíram as bases de tudo de positivo e construtivo que se realizou ao longo dos séculos. Aquilo a que hoje assistimos é a busca desordenada da liberdade total, impossível em qualquer sociedade organizada. Assistimos à procura do prazer a qualquer custo. E vemos apreensivos a repetição de épocas dramáticas do passado, quando aprendemos, através da História, que a fuga desesperada na direção do gozo inconsequente é também uma fuga para longe de Deus.
O homem das megalópoles supercivilizadas é um ser sem rumo, tão frágil na sua aparente segurança, tão abandonado aos seus próprios recursos humanos, que não aguenta uma hora de solidão; quer estar cercado de ruídos, de risos – ainda que falsos –, de alegria – ainda que contrafeita –, de movimento – mesmo que arriscando a vida. Mas que é a vida para esse homem, senão apenas o prazer de viver? Existir é a ordem do dia; não importa como, nem porque, nem para que: o importante é existir pura e simplesmente, seguindo cada qual as suas inclinações e preferências, fazendo o que bem entender, com o mínimo possível de responsabilidade pessoal e social – apenas o necessário para garantir a sobrevivência do corpo. Também, se o corpo morrer, não tem grande importância, porque tudo termina mesmo com a morte… E quanto aos ruídos, os risos, a alegria e os movimentos não conseguem anestesiar suficientemente os sentidos, apela-se para o atordoamento produzido pela bebida e pelas drogas.
Dirá o leitor, algo alarmado, que esse é um retrato pessimista e exagerado da civilização moderna. Talvez seja exagerado; pessimista não, porque nem toda a humanidade está assim contaminada, graças a Deus. Dentro dela grupos humanos equilibrados lutam por dias melhores, aparentemente bradando no deserto, mas semeando a esperança do futuro, preocupados com a alucinação do presente, mas certos do funcionamento inevitável das leis divinas que atuarão no devido tempo para introduzir as correções necessárias.
Enquanto isso não ocorre, porém, é aquele o espetáculo a que assistimos. E do meio do tumulto universal da insatisfação humana, que filosofias e que pensadores vemos medrar vigorosamente e alcançar o sucesso? Jean Paul Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir, Camus, e até Gabriel Marcel, que pregam a ausência de Deus, o absurdo da existência, a liberdade total para o homem escolher o seu próprio destino. São os papas e cardeais do existencialismo, uma corrente de pensamento que só cuida do simples fato de existir; o resto não importa, pois, segundo eles, a vida não tem mesmo explicação, nem finalidade, nem sentido.
No campo da teologia, temos os pensadores da chamada teologia radical. São eles William Hamilton e Thomas J. J. Altizer, que se dizem teólogos – e luteranos! – de uma teologia sem Deus. Para eles, Deus morreu. Para eles, não há mais, na sociedade moderna, lugar para Deus. A humanidade precisa aprender a viver sem Deus. Pregam uma das grandes contradições do século, ou seja, o ateísmo teológico. Repetem as palavras de outro luterano famoso – Dietrich Bonhoeffer, executado pelos nazistas já ao fim da Segunda Guerra, que assegurava ser perfeitamente possível viver sem Deus, sem desespero e sem complexos de culpa.
No campo social vamos encontrar Herbert Marcuse, o profeta do caos, que, com sua interpretação freudiana da História, deseja ver liberados todos os instintos porque, segundo ele, o processo civilizador tem sido uma sucessão de repressões. Por outro lado, numa contradição que nós, pobres mortais, não entendemos muito bem, receita a liberdade excessiva que transformaria a Terra num inferno. Suas doutrinas são tão nebulosas quanto sua linguagem hermética, quase iniciática.
Aliás, os pensadores do nosso tempo – filósofos, teólogos e uma boa parte dos cientistas – não escrevem mais para o grande público, gente como você e eu: ao contrário, usam uma linguagem difícil, quase impenetrável ao entendimento daqueles que não tiveram muito treinamento para isso. Praticamente escrevem apenas para seus companheiros do mesmo ofício. Procurem ler, por exemplo, “Eros e Civilização” ou “Ideologia da Sociedade Industrial”, de Marcuse, e observem bem como é pequena a quantidade de ensinamentos que se consegue filtrar daquela terminologia agreste e abstrata.
São esses, no entanto, os guias atuais da inquietação humana, os orientadores dos que ainda não encontraram seus caminhos. São os que se afinam com as tendências da época.
Não criaram propriamente um sistema; apenas converteram em palavras as angústias e a desorientação da época em que vivem. E por estarem em sintonia com a sua época, com a sua gente e com o estágio evolutivo dessa gente, alcançam o êxito mundano, passam a ser os pensadores da moda.
Enquanto isso, doutrinas amadurecidas e puras como o Espiritismo esperam a sua vez. Esperam que a humanidade as alcance, porque, pela sua maturidade, exigem certo grau mínimo de maturidade de seus adeptos. Por isso, Allan Kardec continua ignorado nas universidades, nos estudos de filosofia, nas histórias do pensamento humano. Apesar da celeuma que levantaram as ideias que ajudou a trazer para o mundo, foi também ignorado em sua época – não estava em sintonia com as maiorias de então.
Ao nascer Allan Kardec em 1804, a França acabava de emergir das crises e das agonias da Revolução Francesa. Brilhava o astro napoleônico e se ensaiava uma reconstrução da sociedade em novas bases, aproveitando o racionalismo, o cientificismo. Quase que junto com Kardec, com uma diferença a mais de seis anos, nasceu também Augusto Comte, o filósofo do Positivismo, doutrina escorada na frieza do fato observado. Fora da observação direta dos sentidos humanos, nada era digno de especulação – estava na área da metafísica. Nessa filosofia também não havia lugar para a sobrevivência do Espírito, nem para Deus. O “Curso de Filosofia Positiva” foi publicado entre 1830 e 1842 e o “Sistema de Política Positiva”, de 1851 a 1854. É praticamente a época em que Kardec começou  a se interessar pelo fenômeno das mesas girantes, de tão tremendas consequências.
Em 1857, quando faleceu Comte, surgiu também “O Livro dos Espíritos”. O Positivismo era uma doutrina vitoriosa, porque respondia às tendências principais da especulação da época. O racionalismo frio dos enciclopedistas era ainda recente e deixara profundas marcas nos Espíritos. Comte trabalhara ativa e demoradamente esse terreno fértil e parecia realmente sintonizar-se com as correntes dominantes dos intelectuais contemporâneos. Suas doutrinas se espalharam pelo mundo, e aqui no Brasil, terra tão generosa para as ideias novas, viriam influenciar os homens que lançavam as bases da República. No entanto, apesar de todo o seu idealismo, do sentido humano, e da predominância da moral, faltou à doutrina de Comte o sentido superior da existência. Para ele, eram estéreis as especulações em torno do Espírito e da ideia de Deus, que nem mesmo como hipótese de trabalho entrava nas suas cogitações. Depois da partida dos Espíritos encarnados que lhe davam ressonância, o Positivismo decaiu no interesse daqueles que se ocupam da discussão de ideias.
Com Kardec está acontecendo o contrário: estão chegando os Espíritos que reconhecem nas suas ideias a marca da Verdade. Já naquela época, a despeito da tremenda oposição que encontrou, conseguiu semear largamente a sua seara. Sabia que a colheita não iria ser imediata, nem espetacular, porque apenas uma fração da humanidade estaria madura para aceitar a sua pregação, mas que importa isso para aquele que tem a certeza de estar ao abrigo da Verdade?
Uma pergunta poderá, no entanto, surgir da parte de alguém: Foi Kardec um pensador, um filósofo no sentido em que conhecemos a palavra? A resposta é: Positivamente, sim. Sua obra pode ser dividida em duas partes distintas: uma, a que escreveu, por assim dizer, a quatro mãos com os Espíritos – “O Livro dos Espíritos”; outra, a que escreveu ainda com evidente assistência espiritual, mas com seus próprios recursos e ideias que assimilara no trato dos problemas transcendentais que haviam sido colocados no primeiro.
A muito leitor desavisado poderá parecer de pequena monta o trabalho individual, pessoal, de Kardec na elaboração de “O Livro dos Espíritos”, mas não é isso que se passou. Imagine-se um de nós, o leitor ou eu, diante da tarefa. Sabemos apenas que nos incumbe escrever, com a colaboração dos Espíritos, uma obra de extraordinária importância.
É, porém, extremamente cautelosa a colaboração dos Espíritos. A princípio nem mesmo dizem que a tarefa consiste em escrever um livro para instrução do mundo nas coisas espirituais. Não dizem que feição deve ter o trabalho, a que roteiro deverá obedecer. Guiado apenas pelo seu bom senso e pela sua sadia e viva curiosidade, Kardec vai fazendo as perguntas sobre aquilo que lhe interessa conhecer. A princípio – confessaria mais tarde – desejava apenas instruir-se na exploração daquele mundo maravilhoso de conhecimentos que se abria diante dele. O assunto o fascinava, porque lhe trazia respostas a perguntas que até então haviam ficado sem solução no seu espírito. Daí por diante, tudo se aclarava: Deus existia realmente, como existia o Espírito. Este sobrevivia, preexistia e se reencarnava. Os “mortos” se comunicavam com os “vivos” e o universo todo era regido por leis morais flexíveis mas iniludíveis. Cada um tinha a responsabilidade pelos seus atos, recompensas pelas suas vitórias, responsabilidades pelas suas falhas. Os seres, como os mundos, eram organizados em escala hierárquica de valores, onde predominavam as leis simples da moral. A teologia ortodoxa estava toda ela precisando de uma total reformulação nos seus conceitos mais queridos, mais essenciais. Não havia inferno, nem glórias eternas, ao cabo de uma única existência terrena.
Tudo isso surgia das suas conversas intermináveis com os Espíritos. Só o decorrer do tempo e a acumulação das respostas é que lhe vieram mostrar que perguntas e respostas tinham uma estrutura que lhes era própria e adquiriam a feição de um livro que ele resolveu dar à publicidade, pois que se ele aprendera ali tanta coisa útil, embora totalmente revolucionária, era necessário transmitir tais conhecimentos aos seus semelhantes.
E assim surgiu, em 1857, “O Livro dos Espíritos”, obra básica, vital ao entendimento de toda a filosofia espírita. Pela primeira vez rasgavam-se os véus que ocultavam a Verdade. Pela primeira vez se escrevia uma obra reveladora de tão profundos conhecimentos, em linguagem singela, ao alcance de qualquer pessoa. Bastava saber ler ou saber ouvir o que alguém lesse.
Mas não parava ali a tarefa do grande missionário. Era preciso prosseguir, extraindo da nova doutrina as consequências que ela acarretaria sobre os demais ramos do conhecimento humano. Podemos imaginar Kardec a fazer a si mesmo algumas perguntas. Como ficaria a doutrina evangélica de Jesus, diante daquelas ideias? E a Ciência? E a religião dita cristã? Como funcionava essa estranha faculdade a que deu o nome de mediunidade? Dessas perguntas, surgiram os demais livros da sua obra.
E assim, de 1854, quando, aos 50 anos de idade, Kardec se interessou pelo fenômeno das mesas girantes, até 1869, quando regressou ao plano espiritual, decorreram os 15 anos libertadores que a humanidade ainda não aprendeu a reconhecer pelo que realmente valem e pelas influências cada vez maiores que vão exercer no futuro.
Fonte: Reformador, ano 87, n. 3, p. 19(63)-21(65), mar. 1969.