terça-feira, 29 de setembro de 2015

DESOBSESSÃO E "CRISE DE ABSTINÊNCIA"


Waldehir Bezerra de Almeida

Desobsessão é tratamento oferecido pelas Casas espíritas aos que sofrem o assédio de Espíritos inferiores, impingindo-lhes sofrimentos psíquicos, físicos e morais. Quando a criatura fica por muito tempo jungida ao Espírito obsessor, cuja carga fluídica é nociva não somente à organização psíquica, mas, também, à estrututa físico-perispiritual, a interrupção do processo de forma apressada gera sintomas desagradáveis no ex-obsidiado, assemelhando-se àqueles que acometem os viciados em drogas, quando não as têm para consumir, vivenciando a crise ou síndrome de abstinência: conjunto de modificações orgânicas que se dão, em razão da suspensão brusca do consumo de droga geradora de dependências física e psíquica. A crise apresenta sintomas como disforia, insônia, ansiedade, irritabilidade, náusea, agitação, taquicardia e hipertensão.
Nós, os trabalhadores da área mediúnica, nem sempre levamos em consideração esse fato. Mas o alerta da Espiritualidade é antigo. A Revista Espírita, de junho de 1864, às páginas 241-242, (edição FEB), publicou uma reportagem intitulada “Relato Completo da Cura da Jovem Obsedada de Marmande”. Dela destacamos fragmentos das informações e orientações dadas pelo Espírito Pequena Cárita:

Meus bons amigos, bani todo o medo; a obsessão está acabada e bem-acabada; uma ordem de coisas estranhas para vós, mas que logo vos parecerão naturais, talvez seja a consequência desta obsessão, mas não obra de Jules [o Espírito obsessor]. [...] Hoje, que conheceis a doutrina, a obsessão ou a subjugação do ser material se vos apresenta não como um fenômeno sobrenatural, mas simplesmente com um caráter diferente das doenças orgânicas. O Espírito que subjuga penetra o perispírito do ser sobre o qual quer agir. O perispírito do obsedado recebe como uma espécie de envoltório, o corpo fluídico do Espírito estranho e, por esse meio, é atingido em todo o seu ser; [...] Quando o Espírito abandona sua vítima, sua vontade não age mais sobre o corpo, mas a impressão que recebeu o perispírito pelo fluido estranho de que foi carregado, não se apaga de repente e continua ainda por algum tempo a influir sobre o organismo. No caso de vossa jovem doente: tristezas, lágrimas, langores, insônias, distúrbios vagos, tais são os efeitos que poderão produzir-se em consequência dessa libertação; mas, tranquilizai-vos, vós, a menina e sua família, pois essas consequências não representarão perigo para ela. [...] Agora é preciso agir sobre o próprio Espírito da menina, por uma doce e salutar influência moralizadora. [...]. (Destacamos.)

Como vemos, na fonte primária do Espiritismo, já encontramos elucidações a respeito da “crise de abstinência”. Essas informações são atualmente confirmadas pelas Entidades espirituais responsáveis pela complementação do Espiritismo, codificado por Allan Kardec. Confiramos.

Afastado do conúbio permanente com Mariana [a obsidiada], graças à interferência dos Benfeitores Espirituais, Guilherme [o obsessor] esteve todo o tempo em tratamento especializado, de modo a refazer o campo mental, secularmente aba¬lado pelo ódio infeliz e destruidor. Mariana, por sua vez, que já vivia aclimatada psiquicamente às vibrações do seu perseguidor, sentiu-lhe a ausência desde o momento em que Saturnino recolhera ao aconchego da prece aquele que se lhe fizera verdugo inconsciente e pertinaz. No dia imediato à primeira incorporação de Guilherme, a jovem, após retornar ao lar, deixara-se abater por forte prostração [...] A jovem amanheceu, portanto, indisposta e perturbada. [...] Ao entardecer, como Mariana continuasse em doloroso desconserto emocional, [...] o irmão Saturnino, [...] interessado em acalmar a família aflita, esclareceu, bondoso: − Mariana, conforme verificamos nos trabalhos espirituais da noite passada, vinha sendo vítima de uma obsessão em grave desenvolvimento. Vinculada pelo passado culposo ao atormentado companheiro que se lhe transformou em adversário vingador, absorveu durante alguns anos as energias deletérias em que se via envolvida, criando um condicionamento psíquico, que, embora desgastando o seu organismo, lhe servia, também e simultaneamente, de sustentação. Libertada da constrição perturbadora, conforme acompanhamos durante os trabalhos desobsesivos, ressente-se e padece as consequências da falta dos fluídos pesados...1 (Destacamos.)

O médico de Nosso Lar enriquece o conhecimento, deixando claro que não devemos ter pressa em desatar os laços obsessivos existentes entre a vítima e o algoz, considerando as intrincadas energias fluídicas das quais se nutrem mutuamente.

Hilário e eu, instintivamente, abeiramo-nos de Odila para afastá-la com a presteza possível, mas o instrutor generoso deteve¬-nos com um gesto, advertindo: − A violência não ajuda. As duas [obsessora e obsidiada] se encontram ligadas uma a outra. Separá-las à força seria a dilaceração de consequências imprevisíveis. A exasperação da mulher desencarnada pesaria demasiado sobre os centros cerebrais de Zulmira e a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou mesmo a morte do corpo. [...] 2

No livro Loucura e obsessão, temos um caso em que o afastamento do obsessor levou o ex-obsidiado a óbito! Em uma reunião mediúnica, o esclarecedor solicita ao obsessor que ele deixe a sua vítima e ouve a seguinte resposta:

Você pede-me que o liberte e não tem ideia do que solicita. A palavra liberte terá um significado muito profundo, quase terrível para você e para ele, para a família, caso eu concorde com o apelo. Estamos tão intimamente ligados, quanto a planta parasita na árvore que a hospeda. Com o tempo, as raízes da naturalmente enxertada penetraram na seiva da outra, gerando tremenda simbiose. Ambos nos necessitamos para viver. Embora eu aqui me encontre, estou vinculado a ele... Se eu arrancar-me do seu convívio físico e mental, eu me desequilibrarei muito, e o corpo dele morrerá... [...] Seu filho morrerá, então, infelizmente. Sem mim, ele não sobreviverá. Escolha: tê-lo comigo, ou, sem mim, perdê-lo.

O pai do obsesso concordou com a libertação, e o filho desencarnou pouco tempo depois, em razão da crise de abstinência!

A irmã Emerenciana, que acompanhou o caso ao lado de Bezerra de Menezes, pergunta ao Mentor se a desencarnação de enfermo em razão do afastamento do obsessor era frequente, e ele respondeu: − Muito mais constante do que se pode imaginar. A minha primeira experiência, nessa área, ocorreu quando eu me encontrava na Terra. Compreendo a dor dos pais de Alberto, porquanto minha esposa e eu a sofremos nos recônditos da alma, quando um ser querido nosso e nós e seus familiares passamos por idêntico transe. 3(Destacamos.)

Após os ensinamentos acima, diante do irmão que necessita de tratamento desobsessivo, tenhamos pressa em acolhê-lo com caridade, mas sem precipitação, lembrando que a sua cura depende de muitos fatores que vão além da nossa boa vontade. Ministremos-lhe os passes, as orientações evangélicas de vida cristã que a Doutrina Espírita nos oferece e contemos com a sabedoria dos Mentores espirituais da instituição que melhor conhecem cada caso.
Concluindo, não acreditamos em método desobsessivo que não dê primazia ao diálogo com o encarnado e com o desencarnado, ajudando-os para que se elevem moralmente pela evangelização e conquistem a reforma íntima, pois não há obsessão sem consciência culpada, e mente equivocada fazendo-se de justiceira. Observamos que, no plano espiritual, as reuniões mediúnicas com intenção de desfazer a ligação nefasta entre encarnado e desencarnado prima sempre pelo diálogo, buscando sempre a reforma íntima dos envolvidos. Remetemos o prezado leitor ou leitora para o que acontece no “Sanatório Esperança”, dirigido pelo nobre Espírito Eurípedes Barsanulfo, quando atendeu ao irmão Ambrósio, internado naquele hospital. O objetivo era libertá-lo do seu algoz. A certa altura, diz o Venerável Eurípedes Barsanulfo ao estudioso da obsessão, Philomeno de Miranda:

Iremos tentar deslocar algumas das mentes que prosseguem vergastando-o, atraindo os seus emissores de pensamentos destrutivos a conveniente e breve diálogo, para, em ocasião própria, torná-lo mais prolongado, mediante cuja terapia procuraremos liberá-lo das camadas concêntricas de amargura e de culpa, de necessidade de punição e de fuga de si mesmo, até o momento de despertamento do sono reparador, que lhe foi imposto por força das circunstâncias. 4 (Destacamos.)

Feita a prece pelo apóstolo de Sacramento, tudo sucedeu como nas reuniões mediúnicas aqui na Terra: uma das senhoras presentes entrou em transe psicofônico, dando a sagrada oportunidade a que o verdugo de Ambrósio dissesse das suas razões de obsediar Ambrósio. Em seguida travou o diálogo, cujo resultado foi extremamente positivo. (Destacamos.)

1. FRANCO, Divaldo Pereira. Bastidores da obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 7. ed. Salvador, BA: LEAL, cap.7, p. 133.
2. XAVIER, Francisco Cândido. Entre a terra e o céu. Pelo Espírito André Luiz. 1. ed. especial, Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2003, cap. 3, p.21-22.
3. FRANCO, Divaldo Pereira. Loucura e obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 3. ed. Salvador, BA: LEAL, 1990, capítulos 19 e 20.
4. idem. Tormentos da Obsessão. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 1. ed. Salvador, BA: LEAL, 2001, p. 159.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

PODER DA VONTADE SOBRE AS PAIXÕES


Terezinha Colle

A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz.

Allan Kardec1

A questão da liberdade moral do homem sempre foi objeto de estudo por parte e filósofos de todos os tempos.

Nosso objetivo aqui é fazer algumas reflexões, à luz da Ciência Espírita, quanto ao poder da nossa vontade sobre nossas próprias paixões.

“Segundo a ideia falsíssima de que lhe não é possível reformar sua própria natureza, o homem se julga dispensado de fazer esforços para se corrigir dos defeitos nos quais se compraz voluntariamente, ou que exigiriam  muita perseverança. É assim, por exemplo, que o indivíduo propenso a encolerizar-se, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se confessar culpado, lança a culpa sobre a sua organização, acusando a Deus, dessa forma, de suas próprias faltas. É ainda uma consequência do orgulho que se encontra de permeio a todas as suas imperfeições.2

“Segundo a doutrina vulgar, de si mesmo tiraria o homem todos os seus instintos que, então, proviriam, ou da sua organização física, pela qual nenhuma responsabilidade lhe toca, ou da sua própria natureza, caso em que lícito lhe seria procurar desculpar-se consigo mesmo, dizendo não lhe pertencer a culpa de ser feito como é. Muito mais moral se mostra, indiscutivelmente, a doutrina espírita. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude e, se lhe diz que, praticando o mal ele cede a uma sugestão estranha e má, em nada lhe diminui a responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, o que evidentemente lhe é muito mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza. Assim, de acordo com a doutrina espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar ouvidos à voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal, como pode cerrá-los à voz material daquele que lhe fale ostensivamente. Pode-o pela ação da sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e reclamando, para tal fim, a assistência dos Espíritos bons. Foi o que Jesus nos ensinou por meio da sublime prece que é a Oração Dominical, quando manda que digamos: “Não nos deixes sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal.” 3

Somente pelo esforço da vontade podemos domar as paixões

Vejamos, então, de maneira sintética, de onde vêm as paixões e em que diferem ou podem ser confundidas com os instintos:

“Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele e estas  se confundem nos efeitos. Há, contudo, entre esses dois princípios, diferenças que muito importa se considerem.
O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência.

As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo.

O que, acima de tudo, as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis, como estimulante, até à eclosão do senso moral, que faz nasça de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, como nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.

O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se  aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.” 4

O homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso

“O corpo não dá cólera àquele que não na tem, assim como não dá os outros vícios; todas as virtudes e todos os vícios são  inerentes ao Espírito; a não ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem que é deformado não pode tornar-se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas ele pode modificar o que é do Espírito, quando tem firme a vontade. Não vos mostra a experiência, a vós espíritas, até onde é capaz de ir o poder da vontade, pelas transformações verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai-vos, pois, de que o homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso; de que aquele
que queira corrigir-se sempre o pode. De outro modo, não existiria para o homem a  lei do progresso.” 5

Eis um exemplo notável do poder da vontade sobre as paixões, do qual reproduzimos aqui uma parte: 6

“Um jovem de vinte e três anos, o Sr. A..., de Paris, iniciado no Espiritismo apenas há dois meses, com tal rapidez assimilou o seu alcance que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um moço, e só uma coisa prova: a leviandade e um entusiasmo irrefletido. Seja. Mas continuemos. Esse jovem irrefletido tinha, como ele próprio reconhece, um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível disposição para a cólera, desde sua infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se uma coisa não estivesse em seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não estivesse pronto em um minuto, entrava em furores, a ponto de tudo arrebentar. Chegava a tal ponto que um dia, no paroxismo da cólera, atirando-se contra a mãe, lhe disse: “Vai-te embora, ou eu te mato!” Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais nem as exortações da religião tinham podido vencer esse caráter indomável, aliás compensado por vasta inteligência, uma instrução cuidada e os mais nobres sentimentos.

Dirão que é o efeito de um temperamento bilioso-sanguíneo-nervoso, resultado do organismo e, consequentemente, arrastamento irresistível. Resulta de tal sistema que se, em seus desatinos, tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria tido por causa um excesso de bile. Disso ainda resulta que, a menos que modificasse o temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse moço estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.

- Conheceis um remédio para tal estado patológico?

- Nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa atenuar a abundância de secreções mórbida

- Ora, o que não pode a Ciência, o Espiritismo faz, não lentamente e por força de um esforço contínuo, mas instantaneamente. Alguns dias bastaram para fazer desse jovem um ser suave e paciente. A certeza adquirida da vida futura; o conhecimento do objetivo da vida terrena; o sentimento da dignidade do homem, revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal; a responsabilidade daí decorrente; o pensamento de que a maior parte dos males  terrenos são a consequência de nossos atos; todas estas ideias, bebidas num estudo sério do Espiritismo, produziram em seu cérebro uma súbita revolução. Pareceu-lhe que um véu se erguera acima de seus olhos e a vida se lhe apresentou sob outra face. Certo de que tinha em si um ser inteligente, independente da matéria, se disse: “Este ser deve ter uma vontade, ao passo que a matéria não a tem. Então, ele pode dominar a matéria.” Daí este outro raciocínio: “O resultado de minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta, portanto é inútil, porque  assim não progredi. Ela me produz o mal e nenhum bem me dá em troca. Além disto, ela pode impelir-me a atos censuráveis e até criminosos.”

Ele quis vencer, e venceu.

“Desde então, mil ocasiões surgiram que antes o  teriam enfurecido, mas ante elas ficou impassível e indiferente, com grande estupefação de sua mãe. Ele sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o recalcava e o forçava a descer.

Um milagre não teria feito melhor, mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa Revista não bastaria para registrá-los, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal, relativos a reformas morais dos mais inveterados hábitos. Citamos este como um notável exemplo do poder da vontade e, além disso, porque levanta um importante problema que só o Espiritismo pode resolver.

A propósito perguntava-nos o Sr. A... se seu Espírito era responsável por seus arrastamentos, ou se apenas sofria a influência da matéria. Eis a nossa resposta:

Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o quisestes seriamente, detivestes o movimento sanguíneo. Assim, se tivésseis querido antes, os acessos teriam cessado mais cedo e não teríeis ameaçado a vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza? É o corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poderiam ser atribuídos ao afluxo sanguíneo, mas, fútil ou não, tinham por causa uma contrariedade.
Ora, é evidente que o contrariado não era o corpo, mas o Espírito, muito suscetível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema orgânico irritável, que teria ficado em repouso, se não tivesse sido provocado.”(...)

Lembrai-vos de que querer é poder.

As predisposições instintivas que o homem já traz ao nascer não são obstáculo ao exercício do livre-arbítrio?

“As predisposições instintivas são as do Espírito antes de sua encarnação; conforme seja ele mais ou menos adiantado, elas podem solicitá-lo a atos repreensíveis, no que será secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições; não há, porém, arrastamento irresistível quando se tem a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder.” 7

“A questão do livre-arbítrio se pode resumir assim: o homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que seja incitado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que sobrevenham, mas será sempre livre de agir ou não agir. Assim, o livre-arbítrio existe para ele, quando no estado de Espírito, ao fazer a escolha da existência e das provas e, como encarnado, na faculdade de ceder ou de resistir aos arrastamentos a que todos nos submetemos voluntariamente. Cabe à educação combater essas más tendências. Ela terá êxito nesse combate quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene.

Desprendido da matéria e no estado de erraticidade, o Espírito procede à escolha de suas futuras existências corporais, de acordo com o grau de perfeição a que haja chegado e é nisso, como dissemos, que consiste sobretudo o seu livre-arbítrio. Essa liberdade, a encarnação não a anula. Se ele cede à influência da matéria, é que sucumbe nas provas que por si mesmo escolheu. Para ter quem o ajude a vencê-las,  concedido lhe é invocar a assistência de Deus e dos Espíritos bons.” 8

“Os Espíritos que sucumbem são geralmente levados a dizer que tiveram uma carga superior às próprias forças; é um meio de escusar-se a seus próprios olhos, e ainda um resto de orgulho: eles não querem ter falido por sua própria falta. Deus não dá a ninguém mais do que se possa suportar, e não pede a ninguém mais do que se possa dar; ele não exige que a árvore recém-nascida dê frutos como a que atingiu total desenvolvimento. Deus dá aos Espíritos a liberdade; o que lhes falta é a vontade, e a vontade depende somente deles; com a vontade não há tendências viciosas que não se possa vencer; mas, quando o Espírito se compraz numa tendência, é natural que não faça esforços para a superar. Somente a si deve atribuir as consequências que daí resultem.” 9

O corpo físico é meio de progresso para o Espírito

“Normalmente, a encarnação não é uma punição para o Espírito, conforme pensam alguns, mas uma condição inerente à inferioridade do Espírito e um meio de ele progredir. (O Céu e o Inferno, cap. III, nos 8 e seguintes.)

À medida que progride moralmente, o Espírito se desmaterializa, isto é, depura-se,com o subtrair-se à influência da matéria; sua vida se espiritualiza, suas faculdades e percepções se ampliam; sua felicidade se torna proporcional ao progresso realizado. Entretanto, como atua em virtude do seu livre-arbítrio, pode ele, por negligência ou má vontade, retardar o seu avanço; prolonga, conseguintemente, a duração de suas encarnações materiais, que, então, se lhe tornam uma punição, pois que, por falta sua, ele permanece nas categorias inferiores, obrigado a recomeçar a mesma tarefa. Depende, pois, do Espírito abreviar, pelo trabalho de depuração executado sobre si  mesmo, a extensão do período das encarnações.” 10

“Os sofrimentos deste mundo independem, algumas  vezes, de nós; muitos, contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que lhe teria sido possível evitar.

Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações se forraria.”(...)

“Ele tem o livre-arbítrio, e por consequência a escolha entre fazer e não fazer; que ele dome suas paixões animais; que não tenha ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; que não seja dominado pelo egoísmo; que purifique sua alma por bons sentimentos; que ele faça o bem; que não ligue às coisas deste mundo importância que elas não merecem; então, mesmo sob seu envoltório corporal, está já depurado, está já desprendido da matéria e, quando deixar esse envoltório, não mais sofrerá sua influência.” 11

“Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, que têm por único objetivo o bem; em si mesmo encontra o homem tudo o que lhe é necessário para segui-las; sua rota é traçada por sua consciência; a lei divina está gravada em seu coração; e, ao demais, Deus lhas lembra constantemente por intermédio de seus messias e seus profetas, por todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente às leis divinas, indubitavelmente evitaria os mais agudos males e viveria feliz na Terra. Se ele não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, e sofre então as consequências. (Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nos 4, 5, 6 e seguintes.)12

A vontade não é um ser, uma substância qualquer; não é, sequer, uma propriedade da matéria mais etérea; a vontade é o atributo essencial do Espírito, isto é, do ser pensante.13

Referência;

1 Revista Espírita, dezembro de 1864 - Da comunhão de pensamentos.
2 Hahnemann. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos - Instruções dos Espíritos - A cólera, item 10.
3 O Livro dos Espíritos, parte terceira - Das leis morais, cap. X - 9. Lei de liberdade - Resumo teórico do móvel das ações humanas, item 8
4 A Gênese, cap. III - O bem e o mal - O instinto e a inteligência, itens 18 e 19.
5 Hahnemann. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX - Bem-aventurados os que são brandos  e pacíficos - Instruções dos Espíritos - A cólera, item 10.
6 Extrato dos trabalhos da Sociedade Espírita de Paris, publicado na Revista Espírita de julho de 1863.
7 O Livro dos Espíritos, item 845.
8 O Livro dos Espíritos, parte terceira - Das leis morais, cap. X - 9. Lei de liberdade - Resumo teórico do móvel das ações humanas, item 872.
9 O Céu e o Inferno - Exemplos - Capítulo IV - Espíritos sofredores - Príncipe Ouran.
10 A Gênese, cap. XI - Gênese espiritual - Encarnação dos Espíritos, item 26.
11 O Livro dos Espíritos - Parte Segunda - Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos, cap. VI - Da vida espírita – Ensaio teórico da sensação nos Espíritos, item 257.
12 A Gênese, cap. III - O bem e o mal - Origem do bem e do mal, item 6.
13 O Livro dos Médiuns - segunda parte - Das manifestações espíritas, cap. VIII - Do laboratório do mundo invisível - Ação magnética curadora, item 131.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O LIVRE-ARBÍTRIO1

  O que é o livre-arbítrio? A história do pensamento registra grandes e profundas reflexões a este respeito, o qual, em essência, significaria a capacidade que temos de fazer livremente as nossas escolhas, escolhendo fazer ou não fazer aquilo que queremos.

Mas será que somos realmente livres? Será mesmo que temos livre-arbítrio para escolher aquilo que queremos? Somos impelidos a responder pela afirmativa, pois nossas experiências diárias normalmente nos dão provas de que, sempre que nada exterior o impeça, eu faço aquilo que quero. Porém a questão de fundo é outra, bem mais complexa, profunda e intrigante: será que eu sou livre para querer aquilo que eu quero?

Duas correntes se formaram ao longo da história da filosofia para responder a esta questão. Conheçamos um pouco cada uma delas2.

A primeira corrente, que remonta às tradições filosóficas representadas modernamente por Descartes e Kant, entende que o livre-arbítrio do ser humano seria completamente arbitrário. O ser humano, portanto, seria capaz de sempre fazer qualquer escolha possível diante de qualquer situação. É dizer: entre dez escolhas possíveis a chance de escolher qualquer uma delas vai ser sempre igual, ou seja, de dez por cento.

Essa primeira tradição filosófica é a que foi adotada por praticamente todas as vertentes filosóficas espiritualistas, pois é com ela que se torna possível isentar Deus do mal que existe no mundo. O homem seria criado totalmente livre para escolher e fazer seu caminho, não sendo, portanto, culpa do Criador se a capacidade de escolha do homem, sempre absoluta, é usada para o mal. Caberia ao homem apenas sofrer as consequências de suas escolhas, para o bem ou para o mal, nesta ou noutra vida.

Já a segunda corrente, que é muito bem representada pelo pensamento de Spinoza e de diversos filósofos materialistas, defende que o livre-arbítrio, se é que existe, não é absoluto, pois o homem seria condicionado a fazer suas escolhas a partir daquilo que ele é. Se alguém escolhe ser mau, é porque ele é mau, porque a natureza o condicionou a tanto, desde que ele surgiu no mundo, para que ele assim o fosse. Portanto, o livre-arbítrio, entendido enquanto faculdade de sempre escolher o que se quer, seria uma espécie de ilusão, posto que, em verdade, não seríamos livres para querer aquilo que queremos.
Spinoza chega mesmo a propor uma imagem interessante, ao comparar aexistência do livre-arbítrio à “convicção” de uma pedra que pensa escolher ocaminho que percorre enquanto cruza o ar até o local onde vai cair.

Essa segunda tradição filosófica é a que encontramos em praticamente todas as filosofias materialistas, que entendem que o homem nada mais é do que um agregado de átomos, células e experiências de vida, que são o que verdadeiramente definem aquilo que ele é e, portanto, aquilo que ele quer. Seu livre-arbítrio seria sempre condicionado. Suas escolhas não poderiam ser diferentes daquelas que ele faz. Fica fácil perceber, portanto, a razão de praticamente nenhuma filosofia de tradição ou vertente espiritualista ter se filiado a esta segunda corrente, pois Deus passaria a ser culpado pelo mal que há no mundo. Afinal, se alguém pratica o mal e se esse alguém o pratica porque é mal (foi criado mal), então a culpa do mal praticado é daquele que o criou: Deus.

Então o Espiritismo, assim como as outras correntes filosóficas de tradição espiritualista, também partilharia da ideia de que somos absolutamente livres? É o que poderíamos concluir de uma leitura isolada da questão 121 de O Livro dos Espíritos:

121. Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o do mal?

“Não têm eles o livre-arbítrio? Deus não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, isto é, tendo tanta aptidão para o bem quanta para o mal. Os que são maus, assim se tornaram por vontade própria.”

Contudo, não é isto que pensamos, se fizermos uma leitura atenta da obra de Kardec. Isto porque, segundo a doutrina espírita, nossa capacidade de escolha é sempre limitada, limites estes que são impostos justamente por aquilo que somos e pelo que já conseguimos nos tornar. Vejamos algumas passagens das obras kardequianas em que fica claro o modo como os Espíritos ensinam o livre-arbítrio:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”3

Vê-se, portanto, que o nosso espírito é o resultado de um processo de construção do próprio espírito, feito ao longo de várias encarnações. Neste processo, somos inúmeras vezes mergulhados dentro dos limites do corpo físico (reencarnações), inclusive sofrendo as influências que o organismo imprime à alma. É o que precisamos relembrar pela leitura de algumas questões de O Livro dos Espíritos:

370. Da influência dos órgãos se pode inferir a existência de uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o das faculdades morais e intelectuais?

“Não confundais o efeito com a causa. O Espírito dispõe sempre das faculdades que lhe são próprias. Ora, não são os órgãos que dão as faculdades, e sim estas que impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.”

a) – Dever-se-á deduzir daí que a diversidade das aptidões entre os homens deriva unicamente do estado do Espírito?

“O termo unicamente não exprime com toda a exatidão o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado. Cumpre, porém, se leve em conta a influência da matéria, que mais ou menos lhe cerceia o exercício de suas faculdades.”

Encarnado, traz o Espírito certas predisposições e, se se admitir que a cada uma corresponda no cérebro um órgão, o desenvolvimento desses órgãos será efeito e não causa. Se nos órgãos estivesse o princípio das faculdades, o homem seria máquina sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos. Forçoso então seria admitir-se que os maiores gênios, cientistas, poetas, artistas, só o são porque o acaso lhes deu órgãos especiais, donde se seguiria que, sem esses órgãos, não teriam sido gênios e que, assim, o maior dos imbecis teria podido ser um Newton, um Vergílio, ou um Rafael, desde que de certos órgãos se achassem providos. Ainda mais absurda se mostra semelhante hipótese, se a aplicarmos às qualidades morais.
Efetivamente, segundo esse sistema, um Vicente de Paulo, se a Natureza o dotara de tal ou tal órgão, teria podido ser um celerado e o maior dos celerados não precisaria senão de um certo órgão para ser um Vicente de Paulo. Admita-se, ao contrário, que os órgãos especiais, dado existam, são consequentes, que se desenvolvem por efeito do exercício da faculdade, como os músculos por efeito do movimento, e a nenhuma conclusão irracional se chegará. Sirvamo-nos de uma comparação trivial, não obstante verdadeira. Por alguns sinais fisionômicos se reconhece que um homem tem o vício da embriaguez.
Serão esses sinais que fazem dele um ébrio, ou será a ebriedade que nele imprime aqueles sinais? Pode dizer-se que os órgãos recebem o cunho das faculdades.4

Vê-se assim que o espiritismo talvez seja a única filosofia espiritualista que defende o livre-arbítrio como uma faculdade que nunca é absoluta, pois nossas escolhas estão condicionadas àquilo que somos. Sim, somos livres para escolher o que queremos, mas nem sempre para querer o que queremos.
Nosso espírito, portanto, escolhe a partir daquilo que ele é. Se somos egoístas, invejosos, ciumentos, orgulhosos, enfim, viciosos e imperfeitos, então nossas decisões tenderão a obedecer os impulsos dados por essas características. Se somos generosos, humildes, caridosos, enfim, virtuosos e bons, então nossas decisões tenderão ao bem. Um espírito imperfeito não é capaz de fazer as mesmas escolhas de um espírito puro, pois aquele ainda precisa passar pelo processo de depuração que o faça galgar os degraus evolutivos da escala espírita5. Tais reflexões mostram como a doutrina espírita talvez acabe por se localizar filosoficamente muito mais próxima das correntes materialistas e spinozistas do que das espiritualistas tradicionais.

Façamos o teste e imaginemos, com alguns exemplos, se somos mesmo tão facilmente livres para escolher diante das seguintes situações: não ficar com raiva quando somos xingados ou agredidos; não sentir medo diante de uma situação que nos assusta; não sentir ciúme diante de alguém que amamos; confiar nas pessoas quando a esmagadora maioria das experiências que tivemos na vida nos induz a não confiar; uma criança dar-se a comer verduras quando sobre a mesa de refeições se encontram outras guloseimas; etc.

Então estaríamos fadados a nos conformar com o nosso ser, com aquilo que somos? Estamos então condenados a ser, agir e escolher apenas de acordo com aquilo que nos tornamos? Como sair desse círculo vicioso? Eis aqui a grande mudança de perspectiva proposta pelo espiritismo, pois ao tempo em que essa doutrina nos esclarece que estamos limitados a escolher a partir daquilo que somos, ela também nos esclarece que podemos, pela nossa vontade, mudar nossa natureza, inclusive tornando-nos capazes de escolher diferentemente do que escolhemos ao longo de todas as nossas existência precedentes, bem como na atual. Dissemos que a doutrina espírita é “mais próxima”, e não perfeitamente idêntica às filosofias materialistas, justamente porque a estas correntes de pensamento faltavam as peças capazes de explicar com maior exatidão esse complexo quebra cabeças chamado livre arbítrio, peças estas que são precisamente os conceitos de imortalidade da alma, de reencarnação e de progresso.

 Pelo conceito de imortalidade da alma, entendemos que não somos apenas matéria e que continuamos a existir após a morte do corpo físico, preservando todas as nossas características e tendências, intelectuais e morais. Pela ideia de reencarnação, passamos a compreender que o espírito já teve outras existências e que habitou multiplas moradas corpóreas, manifestando nos corpos em que reencarna as tendências, boas e más, que acumulou ao longo de suas existências pretéritas. Pela lei de progresso, enfim, fica claro que podemos e devemos evoluir ao longo de cada nova encarnação, as quais tem por objetivo justamente nos propiciar as condições necessárias para que possamos dar mais alguns passos no processo de aperfeiçoamento do espírito, rumo à nossa perfeição.

Portanto, o livre-arbítrio, segundo a espiritismo, não é um atributo pronto e acabado, recebido como uma “graça” de Deus, mas sim uma conquista do espírito, que é obtida ao longo de incontáveis encarnações e à medida que este evolui, tanto intelectual quanto moralmente, o que só ocorre ao longo e a partir do jogo de escolhas “tentativa-erro tentativa-acerto”, que nos demanda muito tempo. A natureza não dá saltos, e o homem, enquanto espírito perfectível, também faz parte da natureza.

Não fosse assim, seríamos absolutamente culpados por não conseguirmos agir tal qual um espírito puro, como Jesus, já mesmo em nossa encarnação atual. Não seríamos perdoáveis. Mas assim como um pai não exige de seus filhos pequenos que estes ajam como adultos, também Deus não exige perfeição de seus filhos (espíritos) que ainda estão atolados em processos e mundos – como a terra – carregados de limites e imperfeições.
Compreender isto é muito importante, pois faz com que adquiramos consciência para não viver nos culpando por ainda não sermos aquilo que achamos que já poderíamos ser.

Feitas estas considerações, fica bem mais fácil compreender porque o espírito pode até estacionar por um certo tempo em seu processo evolutivo, porém  amais degenerar, escolhendo assim, por exemplo, deixar de ser bom ou puro para voltar a ser imperfeito6. Daí porque é incompatível com a doutrina espírita qualquer teoria que defenda a “queda” do espírito, tais aquelas encontradas em correntes religiosas ou filosóficas que afirmam que a origem do mal ou do demônio residem na rebelião de um ou mais anjos contra Deus.
Afinal, se o espírito já é bom ou puro, segundo a escala espírita, então ele não pode mais fazer escolhas próprias de um espírito imperfeito, simplesmente porque não consegue, porque não é mais esta a sua natureza.

A partir de todas estas reflexões, restam ainda mais claras as razões pelas quais os espíritos nos recomendam a tolerância e a indulgência para com o próximo, pois não podemos exigir das pessoas atitudes que, pelo menos em determinado momento existencial, elas não podem ter. Misericórdia para todos, e para nós mesmos, pois ainda estamos aprendendo a fazer escolhas. Nas palavras de Sponville:

“Trata-se de compreender alguma coisa. O que? Que o outro é mau, se for, ou que está enganado, se estiver, ou que é fanático ou dominado por suas paixões, se paixões ou ideias o dominarem, enfim que lhe seria difícil, em todo caso, agir ao contrário do que ele é (por que milagre?) ou de se tornar subitamente bom, doce, razoável e tolerante... Perdoar:aceitar. Não para cessar de combater, é claro, mas para cessar de odiar.”7

Contudo, não podemos fazer deste conhecimento algo que nos leve ao comodismo. Lembremos que nossa vontade de mudar ainda é muito pequena.
Muitas vezes dizemos “quero deixar meus vícios”, mas muito satisfeitos ficamos que as coisas não sejam como “queremos”8. Contudo, se por um lado dificilmente poderemos nos tornar espíritos bons9 nesta encarnação, por outro os Espíritos também tem sempre insistido que nos é possível, mesmo na encarnação que vivemos agora, no planeta terra, conseguir evoluir a um ponto tal que não nos seja nem mesmo necessário reencarnar mais neste mundo. A este propósito, rememoremos a questão 909 de O Livro dos Espíritos:

909. Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?

“Sim, e por vezes fazendo esforços bem pequenos. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos dentre vós fazem esforços!”

Podemos ver, enfim, que é a partir desse jogo dialético que as mudanças ocorrem em nosso espírito: eu transformo minha natureza a partir das diferentes escolhas que vou fazendo; e passo a fazer escolhas diferentes quando consigo mudar minha natureza. O processo é assim mesmo, aparentemente contraditório e que nos faz lembrar aquilo que em lógica échamado de “petição de princípio”10. Porém não é difícil concluir, empiricamente, analisando a vida dos outros e a nossa própria, que isso efetivamente ocorre, pois muitos de nós somos capazes, hoje, de já fazer algumas escolhas que alguns anos atrás eram absolutamente impensáveis.

Nossa história registra vários exemplos de homens que conseguiram fazer mudanças significativas na sua natureza, pois deram mostras, em uma mesma encarnação, de que no início de suas vidas ainda carregavam tendências características de espíritos imperfeitos, mas alguns anos depois já eram exemplos dignos de bons espíritos. É o caso de personalidades como Paulo de Tarso, Santo Agostinho e São Vicente de Paulo, dentre outros.

Diante destes exemplos, e de tantos outros até mesmo menos conhecidos, o estudioso mais atento do espiritismo poderia objetar que, em oposição ao ponto de vista aqui exposto sobre o livre-arbítrio, existiriam algumas passagens da obra kardequiana capazes de contrariá-lo11.
Entendemos, contudo, que não há oposição entre estas ideias, a não ser a partir de um ponto de vista puramente teórico. Importante registrar, contudo, que não devemos tratar a “vontade” como sinônimo de “livre-arbítrio”. O fato é que este é um assunto que também guarda uma certa complexidade – para não dizer polêmica – filosófica, não sendo esta a oportunidade adequada para desenvolvê-lo. Correríamos o risco de misturar prolongadamente o estudo desses temas12, o que não é o caso quando se trata apenas de um breve artigo. Longe estamos, porém, de pretender nos arrogar como detentores da verdade. Estudemos mais, reflitamos mais. Todos nós!

Deste modo, vê-se que, segundo o nosso entendimento da teoria espírita, o espírito não foi criado com livre-arbítrio, mas sim para, dentre outras coisas, adquirir livre-arbítrio. Contudo, esta conquista do livre-arbítrio nunca será absoluta – nem mesmo para o espírito puro, que não pode escolher degenerar –, pois sempre teremos nossas escolhas condicionadas à nossa natureza, àquilo que somos.

Assunto encerrado? De modo algum! Esperamos, contudo, que com este pequeno texto tenhamos podido despertar no leitor um pouco mais de desejo de mergulhar à fundo na obra de Kardec e dos grandes filósofos a fim de entender um pouco mais sobre esse tema tão rico, complexo e apaixonante que é o livre-arbítrio. Podemos até não nos tornar mais sábios, mas se pelo menos conseguirmos ficar menos ignorantes a tentativa já terá valido à pena.

Daniel A. Lima – 05 de outubro de 2012

Referência;

1 Para um estudo abrangente do assunto, recomendamos o áudio nº 23 do “Estudo das Paixões”, que
pode ser acessado pelo link http://www.geak.com.br/site/upload/midia/mp3/releitura-dos-itens-118-893-
2 Para um estudo mais abrangente do assunto, inclusive destas duas correntes, recomendamos a leitura do capítulo “Livre-Arbítrio”, no livro “Apresentação da Filosofia”, de André Comte-Sponville.
3 Confirmando o entendimento de que o livre-arbítrio se desenvolve à medida que o espírito progride, veja-se também as questões 122, 540, 564, 609, 780, 844, 847 e 849 de O Livro dos Espíritos.
4 Sobre as influências do organismo, ver também as questões 845 e 846 de O Livro dos Espíritos.
5 Fazemos menção à “Escala Espírita” tratada por Allan Kardec nas questões 100 a 113 de O Livro dos Espíritos.
6 Este assunto é tratado na questão 118 de O Livro dos Espíritos.
7 André Comte-Sponville, em “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, cap. 9 (Misericórdia), p. 134.
8 Ver a questão 911 de O Livro dos Espíritos.
9 “Bons” segundo a escala espírita.
10 A Petição de Princípio é uma forma de inferência que consiste em adotar, para premissa de um
raciocínio, a própria conclusão que se quer demonstrar. Ocorre sempre que se admite nas premissas o
que se deseja concluir. O caso mais óbvio é a mera repetição. Exemplo: “uma pessoa odeia as pessoas
de outra raça, porque é racista.”
11 Ver, por exemplo, O Evangelho Segundo o Espiritismo » Capítulo IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos » Instruções dos Espíritos » A cólera » Item 10
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=3217&idioma=1), bem como o texto da Revista Espírita de Julho de 1963 intitulado “Poder da vontade sobre as paixões”
(http://www.ipeak.com.br/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=5475&idioma=1).
12 Sobre o tema, ver, p. ex., a obra “Viver”, de André Comte-Sponville, Ed. Martins Fontes, cap. “Os
Labirintos da Moral”, Ed. Martins Fontes, 2ª edição, 2008, p. 174.

sábado, 1 de agosto de 2015

ESPIRITISMO DE VIVOS

Leopoldo Machado foi um dos iniciadores e concretizadores
de teses de educação e de teatro espírita

CEZAR BRAGA SAID

O “Espiritismo de vivos” tornou-se uma das bandeiras de um dos maiores espíritas que o Brasil já conheceu. Referimo-nos ao baiano Leopoldo Machado (1891-1957), nascido em Cepa Forte, hoje Jandaíra, completando-se este ano 50 anos de sua desencarnação.

Para fundamentar melhor este lema, Leopoldo chegou a escrever um livro intitulado Cruzada do Espiritismo de Vivos (1942)1 que, apesar do tempo, ainda permanece bastante atual pelo enfoque e pelo conteúdo. Nele, declara por meio de dez pontos, o que pretendia com semelhante bandeira.

Desejava e propunha um Movimento Espírita voltado principalmente para os encarnados, sem qualquer demérito para as práticas mediúnicas e para as relações estabelecidas com o mundo espiritual. Mas questionava o fato de a mediunidade, que ignifica“meio”, ser encarada e vivida com um fim em si mesma por alguns companheiros. Acreditava ser necessário se cultivar o intercâmbio sério e salutar com os Espíritos, mas não cultuá-los, reforçando os atavismos que trazemos do passado, muitas vezes ratificados na atual existência.

Entendia a evangelização da criança e do jovem como priori  prioridade nas atividades do Centro Espírita e que as mesmas deveriam se dar por meio da música, da poesia, da literatura, do teatro, da arte espírita de um modo geral. Educador que era, reconhecia que sem alegria, dinamismo e criatividade, não teríamos uma ação evangelizadora genuinamente prazerosa e verdadeiramente educativa.
Valorizava imensamente os movimentos confraternativos onde todos podemos estreitar laços,  aprender juntos por meio de conversas edificantes, em horas construtivas de convivência e de apreciação da arte espírita.

 Foi um dos grandes entusiastas das juventudes espíritas, do processo de Unificação que teve como marcos maiores o “Pacto Áureo” e a Caravana da Fraternidade, da qual foi integrante ativo juntamente com Lins de Vasconcellos, Francisco Spinelli, Carlos Jordão da Silva e Ary Casadio.

Afirma Antonio Cesar Perri, em livro de Eduardo Carvalho Monteiro, que no campo da Unificação Leopoldo teve uma ação pioneira que antecede mesmo a assinatura do “Pacto Áureo”, pois “participou do Congresso Brasileiro de Unificação Espírita (São Paulo, 1948) e, na seqüência, foi responsável pelo I Congresso de Mocidades Espíritas do Brasil (Rio de Janeiro, 1948). O dinâmico divulgador foi um dos iniciadores e concretizadores de teses de educação e de teatro espírita. Atuou como filantropo, expositor, polemista e autor de vários livros. Os reflexos de obras de Leopoldo estão presentes em todas as partes do país até quando se entoa a ‘Canção da Alegria Cristã’, pois é co-autor desta difundida música espírita”.2

A Caravana da Fraternidade percorreu 11 Estados do Norte e Nordeste, colhendo adesões ao “Pacto Aúreo” e divulgando os objetivos da Unificação. Em seu programa constavam conferências para o grande público, mesas-redondas com o objetivo de se chegar a consensos em torno do ideal unificacionista, visitas às instituições espíritas de assistência social, levando estímulos aos seus fundadores e colaboradores, além de programas sociais organizados pelos confrades que os recebiam.

De acordo com Clóvis Tavares,3 Leopoldo Machado publicou cerca de 30 livros e deixou mais 20 que, infelizmente, não vieram a lume. Escreveu por 24 anos para a revista Reformador, publicando poesias, crônicas, artigos e conferências.
Foi também colaborador assíduo dos periódicos O Clarim e Revista Internacional de Espiritismo, além de inúmeros outros jornais espíritas.
Espírito ativo fundou uma escola que até hoje é dirigida por seu sobrinho (Colégio Leopoldo, 1930), um lar destinado inicialmente ao abrigo de velhinhos e crianças (Lar de Jesus, 1942), um albergue noturno e uma escola de alfabetização na instituição espírita onde militou durante muitos anos, o Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade, na cidade de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.

A seu respeito, disse Carlos Imbassahy que “[...] dificilmente encontraremos nas fileiras do Espiritismo outro propagandista com tanta energia, com tanta coragem, com tanta personalidade.  Tal ou qual festividade corria mais ou menos fraca. Nisso aparecia Leopoldo; tudo se modificava, o seu gênio alegre, comunicativo, logo se transmitia a todos. O ambiente se enchia de vibração nova. Ele emprestava vida a tudo a que se associava”.4

Também o lúcido pensador, autor e divulgador espírita Deolindo  Amorim afirmou que Leopoldo era um espírita muito ativo, inconformado com a displicência, não compreendia o Espiritismo de “câmara mortuária” e por isso era vibrante e contagiante. Disse ainda Deolindo que  ambos tinham lá suas diferenças, mas isso não impedia que um e outro se quisessem bem e se olhassem como amigos: “Divergimos, mais de uma vez, em determinados pontos de vista, e nunca lhe escondi a minha objeção a esta ou aquela de suas opiniões, mas a nossa amizade nunca se rompeu, felizmente. Leopoldo Machado deixou, nas fileiras espíritas, um claro dificilmente preenchível. Que ele possa, do outro lado, na espiritualidade, continuar a nos dar estímulo [...]”.5

Decerto que este grande companheiro desaprovaria qualquer culto em torno da sua personalidade, mas muitas vezes vivemos à cata de novidades, novos autores, novas práticas e vamos seguindo esquecidos dos pioneiros, dos que pavimentaram o caminho para que pudéssemos ter um movimento mais liberto, arejado, valorizando o estudo e as relações mais cristãs, realmente fraternas.

Recordar Leopoldo Machado e conhecer o seu legado é fazer um tributo a todos os pioneiros do Espiritismo que, enfrentando dificuldades sem conta, souberam erseverar abrindo clareiras contra o preconceito e o divisionismo, em prol de um movimento onde possamos estar sempre ombro a ombro e sempre lado a lado, como companheiros, amigos e irmãos que vivem alegres não apenas pensando, mas fazendo o bem e nos querendo uns aos outros, também muito bem.

 Referências:

1MACHADO, Leopoldo. Cruzada do espiritismo de vivos. Matão: O Clarim, 1942.

2MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Leopoldo Machado em São Paulo. São Paulo: USE, 1999.
3RAMOS, Clóvis. Leopoldo Machado. Idéias e ideais. Rio de Janeiro: CELD, 1995.
4 Jornal A Voz da União.
5AMORIM, Deolindo. “Algumas palavras sobre Leopoldo Machado”. Revista Internacional
de Espiritismo. Matão: O Clarim, 1957.


Fonte;  Reformador Ano 125 / Maio, 2007 / N o 2.138